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Rainha da Ponte

Por: Isabela Maia

Solitária? De fato, é o que pensam, mas não. De jeito nenhum. Quando nascemos somos batizados duas vezes, ou pelo menos alguns de nós. Ela foi uma dessas pessoas e, graças a esse segundo batismo, viverá sempre com a certeza de que jamais estará sozinha. Quanto ao primeiro, não importa mais.
Os dias poderiam ser todos iguais para uma pessoa comum, sem o dom. Não se passava um por do sol sem que um evento extraordinário ocorresse em seu reino, tudo graças ao bendito dom. Ela nem imagina de onde ele veio, só sabe que existe e faz bom uso dele.
Hoje, como em todas as manhãs, estava sentada em sua varanda, no topo do castelo. Ela tinha formato de ponte, pois nossa protagonista gostava de poder atravessar de lá para o outro lado de sua casa sem precisar passar por tantos corredores e portas. Era uma ponte larga, de pedra, e todo tipo de gente passava por lá, pois ela permitia que os plebeus transitassem pelo castelo. A ponte começava lá no chão, próxima a uma estrada por onde carruagens transitavam freneticamente, terminava no pátio do castelo. Era enorme.
Todos a conheciam, mas poucos chegavam a lhe dirigir a palavra. Ela sentava no chão mesmo, gostava, achava-o confortável. Nessa manhã, vestia um vestidinho amarelo, florido, longo, pés descalços, tiara na cabeça. Levou um pedaço de pão para mordiscar enquanto contemplava as carruagens passando lá em baixo. Os cavalos eram tão bonitos e bem cuidados! Havia os brancos, os pretos, os marrons, alguns eram enfeitados com fitas e penteados especiais em suas crinas. Ela gostava de se imaginar conduzindo um desses alazões, em uma floresta talvez, o vento esvoaçando seus cabelos, o odor da terra, das plantas, penetrando suas narinas com a mais pura delicadeza. Passava horas perdida nesses pensamentos.
Estava analisando se seria mais adequado trançar a crina de seu cavalo – ou égua, ainda não estava decidida -, ou então enfeitá-la com fitinhas, quando um passante sentou-se ao seu lado:
-       Bom dia, senhora!
-       Bom dia, meu caro. Como vai a sua manhã?
-       Não tão boa quanto a sua, isso posso garantir. Percebi que estava perdida em pensamentos e sinto ter interrompido, mas preciso de uma história com urgência!
Ah, havia mais uma peculiaridade sobre essa senhora que gostava de sentar no chão de pontes e observar o decorrer dos dias: ela era contadora de histórias. Sempre que alguém precisava de uma história, podia procurá-la, era um trabalho de tempo integral. Isso começou quando ainda era bem nova, no dia em que conheceu um pobre viajante.
O tal viajante era vendedor de poções, mas ainda não dera a sorte de vender uma sequer. Realizava essa função há sete anos. Ela o encontrou em um passeio que dava na floresta, procurando flores para fazer uma coroa e frutas silvestres para distribuir aos passantes da ponte. Ele estava sentado debaixo de uma árvore e chorava. Ela se aproximou e perguntou o que acontecera, ele compartilhou sua história e ela achou que deveria fazer o mesmo:
“Era uma vez uma pobre senhora, seu nome era Maria e ela não tinha casa. Passava seus dias pelas ruas, vagando sem rumo, em busca de Deus, em busca da vida, de significado. Às vezes uma alma caridosa apiedava-se e lhe cedia uns trocados, ou dava-lhe um pedaço de pão. Ela era feliz. Contra todas as expectativas, nunca se via essa senhora sem um sorriso no rosto, pois quando ela nasceu, foi presenteada com uma coisa tão valorosa que seria impossível para qualquer ladrão roubá-la: esperança. 
“Seus dias eram todos iguais. Lúgubres, para os cegos, reluzentes para os visionários. Sua sina estava decidida: iria morrer, não seria lembrada. Ela sabia disso, e passava todos os dias com um sorriso no rosto”.
Suas histórias eram mágicas, o efeito, imediato. Aquele vendedor nunca mais percorreu o passar dos segundos no relógio da mesma maneira. Nem ninguém que já ouviu-as conseguiu contemplar o alvorecer sem um transbordar de felicidade no coração. Ela abria olhos, almas, vidas. Com sua própria história.
A fumaça dos carros enevoava a passarela e o odor forte de gasolina ativava até o olfato menos aguçado de qualquer passante. Pequena, solitária, invisível, a senhora se encolhia em uma das curvas das grandes ladeiras que delimitavam aquela quase ponte. Quem a via, olhava com pena. Não sabia do seu dom.

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