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Vietnã: A guerra pela sobrevivência na favela

Por Isabela Maia

Após anos a fio, o Vietnã conseguiu vencer a superpotência capitalista. Mas a guerra não acabou.

Milhares de quilômetros distante do sudeste asiático, onde ocorreu a histórica guerra, outro Vietnã trava uma luta contra o capitalismo e todos os seus valores e, contra todas as expectativas, seus soldados também estão vencendo. Isso porque, ao contrário da maioria dos indivíduos, eles conseguiram encontrar significado nas minúcias da vida, conseguiram ser felizes apesar de tudo.
Era uma manhã ensolarada, úmida, e o céu estava bem claro, mas para os mais experientes ele anunciava chuva. Alheia à qualquer condição climática, a favela do Vietnã erguia-se imponente por entre dunas e muita poeira. É tão pequenininha, que se você piscar ao passar por ela, ao abrir os olhos já estará longe. 
Favela é uma denominação forte, muitos dos próprios moradores se recusam a utilizá-la. No passado talvez tenha sido mesmo, naquele tempo remoto, quase 50 anos atrás, mais, menos, quem sabe? Só se sabe que as casas eram de palha e madeira roubada.
As casas se encontram apenas de um dos lados da estrada e vão subindo as dunas até onde a vista alcança. Do outro lado, cercas de arame delimitam uma área que não lhes pertence e da qual mantém a maior distância possível. É o primeiro sinal da segregação que separa aquela gente do resto do mundo.
Hoje, com a maioria das casas de alvenaria, talvez favela seja um nome inadequado para a pequena comunidade localizada na Estrada de Alcaçuz, ou Rua da Esperança. É o que seus moradores pensam, mas não as prefeituras e todos os demais. Não importa, eles gostam de morar lá de todo jeito. É um lugar calmo, tranquilo... Mas cheio de poeira!

A SINA DELA É VIGIAR

Dona Edilene, 35 anos, é, provavelmente, a mulher mais cidadã e consciente de suas responsabilidades que aquela comunidade já teve o prazer de conhecer. Ela é assim; determinada. Já trabalhou durante 11 anos como doméstica, mas está desempregada há dois meses e hoje é do lar. Dona de uma das primeiras casas de alvenaria do local, viveu lá sua vida toda. Lembra-se bem do passado: “Antes era tudo barraco. Fazia tudo de tábua e palha que a gente pegava por aí e não tinha energia não, a gente tinha que roubar, fazer gambiarra mesmo”. Ela está há 15 anos em sua casa de tijolos.
Sua pouca altura, cerca de 1,60, não a deixa se intimidar e está sempre disposta a denunciar todos os problemas que conseguir identificar em seu lar e nas proximidades. É como uma leoa, que cuida do seu bando acima de tudo, não deixando nenhuma hiena se aproximar para tirar proveito daquilo que já conquistou.
Ela veste uma blusa de algodão vermelha, com três botões vermelho-claros na gola V, um short jeans claro e está descalça. Enquanto fala, sua voz expressa o descontentamento que sente com a falta de medidas da prefeitura para com sua comunidade. “Eles fingem que a gente nem existe”. Para tudo, médicos, escola, transporte, precisam recorrer à prefeitura da cidade vizinha. Mas ela não deixa isso passar.
Como se para comprovar o seu poder de observação e a eficácia de seu trabalho de sentinela, logo começa a listar todos os problemas da comunidade e a dizer como já agiu para acabar com eles. O principal problema é a poeira. 
Muitas empresas de turismo realizam trilhas de quadricículo e passam bem por aquela rua, além de todos os outros carros e motos de pessoas que transitam pela região ou se dirigem para as lagoas próximas à favela. A poeira é insuportável! Ela e a família ficam gripados com frequência, pois não têm como se proteger. Mas isso não é o pior, nem de longe: o dinheiro para o asfaltamento da rua já foi liberado há muito tempo, entretanto, não se sabe mais dele. Assim, eles continuam sofrendo com a poeira e com as doenças respiratórias constantes. 
Contudo, a poeira não é a única responsável por esses problemas: “Tem um vizinho aqui que quase todo dia faz cavoeira, aí o cheiro de fumaça fica entrando em casa e não posso fazer nada”. Nesse caso, infelizmente, a única coisa que pode fazer é aguardar o cheiro passar, pois reclamar já não adianta. Esses momentos são de grande desespero, pois um de seus filhos nasceu com sopro cardíaco, e é o mais afetado pela qualidade inadequada do ar. Não há o que fazer.
Ela lamenta muito ser a única da comunidade com garra suficiente para enfrentar os empecilhos da vida. Quem sabe se eles se unissem mudanças significativas não seriam possíveis? Bom, até que este dia chegue, e não importa se não chegar, vai continuar cumprindo seu papel de cidadã, disposta a fazer de tudo pela melhoria de sua qualidade de vida. Tanto ela procura fazer, que muitas vezes já chegou a contatar empresas de televisão da cidade para contar o que se passava por lá. Não diz se já chegaram a apurar os fatos na comunidade, mas enfatiza que ligará quantas vezes for preciso para que todos fiquem cientes das injustiças que a acometem.
De repente, seus filhos começam a se aproximar. Ela tem cinco, mas apenas três deles estão à vista. Eles ficam por perto, observando a conversa e, de vez em quando, opinando. Aprenderam a denunciar com a mãe e com certeza carregarão sua mesma sina no futuro: vigiar. O mais velho, Luiz Fernando, já mostra claros sinais de que irá seguir os passos da mãe, pois diversas vezes interrompe, conta com suas palavras o que vê acontecendo por lá.
Edilene odeia ter que engolir sapos, mas há momentos em que é necessário, todavia, ainda há muitos outros problemas para denunciar. Sem se deter um instante, logo mudou de assunto e trouxe à tona um problema seríssimo que acomete a comunidade: a cidade de Parnamirim está usando aquele local como lixão! Ao que parece, o lixão da cidade foi fechado, e agora, de segunda a sexta, comitivas de até 30 caçambas passam pela ruazinha apertada e depositam os dejetos alheios ali mesmo. “Não pode construir nessa área, aí eles pegaram e transformaram em lixão”. O IBAMA visita o local todos os anos, contudo suas medidas, desconhecidas pela sentinela, ainda não trouxeram nenhum efeito significativo.
E essa não foi a primeira vez que a comunidade teve problemas com lixo. Certa vez, eles ficaram durante um ano sem serviço algum de coleta de lixo, sendo obrigados a depositar tudo no terreno do lado, um reino gigante, perto do qual a comunidade parecia insignificante; um reino que não tinha muros altos de pedra e uma ponte levadiça para protegê-lo, era só uma porteira. E mesmo assim, o limite é extremamente respeitado. Isso porque, hoje, ele pertence à prefeitura de Parnamirim.
Os paradoxos com os quais convivem os moradores da comunidade do Vietnã são, no mínimo, intrigantes. Apesar de grande parte de suas mazelas derivarem de injustiças cometidas contra eles pela prefeitura dessa cidade vizinha, ela também é responsável por lhes prover assistência, quando necessário, uma vez que sua própria cidade a renega. Eles não parecem existir para Edilene, mas seu filho Luiz dá sinais de perceber que algo nessa situação não está certo, pois para ele, qualquer menção à cidade vizinha gera uma cara de desgosto e o faz cruzar os braços com mais força.
O menino faz o sétimo ano em uma escola próxima. Apesar de os ônibus normais passarem apenas 3 vezes ao dia, o escolar passa com regularidade, ou quase: “Quando chove e a rua fica esburacada ele não vem”. Seguindo o exemplo da mãe, também começa a fazer suas próprias denúncias, e se mostra especialmente desgostoso com a proibição da prefeitura de Parnamirim de que entrem no terreno ao lado. Lá, ele e seus amigos costumavam jogar bola, correr, brincar, desfrutar de uma infância com aventuras inimagináveis para a maioria. Hoje, ainda podem correr às lagoas próximas para um pouco de diversão. Pegam caixas cheias de cupins e jogam na água, logo chegam montes de peixes para pegarem.


ALMAS COMEDIDAS

Marcilene, 40 anos, e Erika, 34, são o que se pode chamar de moradoras típicas da favela do Vietnã. São donas de casa, reservadas, envelhecidas pela poeira do tempo, que corre ligeira por ali. Na sociedade matriarcal que a comunidade se mostrou ser, elas são as chefes de seu antro familiar e, como todo líder de matilha, se mostram dispostas a defender com ferocidade o que lhes pertence. Ambas atenderam à porta de vestido de pano, estampado, acima dos joelhos, lá pelo meio das coxas, com expressão desconfiada. Mas possuem boas maneiras e sobriedade.
Dona Marcilene mora na comunidade há mais de vinte anos, é mãe de três filhos, mas apenas um deles frequenta a escola. Seus cabelos, outrora negros, apresentam-se salpicados pelas areias alvas da ampulheta suprema. Tem modos discretos e não parece disposta a se soltar. Seria um ultraje.
Mal fala, afinal. Reclama um pouco da segurança e dos correios. É preciso ir até Búzios para ter acesso à correspondência! Fora isso, o cotidiano é normal.
Em determinado momento um homem montado em uma motocicleta, acima dos 40 anos e também do peso ideal, para. Leva uma cesta na garupa de sua moto e oferece seu conteúdo à dona de casa: “Tapioca, peixe fresco, atum...”. Marcilene recusa.
Ao lado de sua casa há outra, bem grande em comparação com as demais. Ela é protegida por uma parede baixa e um portão com grades de ferro, que permitem ver o interior do local. Há um espaço para estacionamento e uma varanda larga. A frente da casa, uma varanda se encontra repleta de roupas secando no varal, diversas bermudas infantis se destacam. Um cachorro descansa próximo ao portão. Um balde transborda embaixo de uma torneira que jorra água sem parar. Não há ninguém em casa.
A dona de casa Erika teve sua juventude desgastada pelas dificuldades da vida, e hoje carrega como última penitência as marcas do que passou impressas em seu rosto. Como o membro alfa do grupo que chefia, afasta-se  da comoção que ocorre dentro de casa para atender a quem perturba a paz de seu lar.
Hoje é dia de receber visitas. Seus primos e os filhos deles vieram passar o final de semana em sua casa, está uma loucura. Mas geralmente são só ela, o marido e a filha. Ela mora na comunidade há 5 anos; antes era apenas um quartinho, mas então conseguiu comprar aquela casa. Adora morar naquele lugar. Adora! E o diz com tanto fervor que é capaz de contagiar o mais indiferente ser das redondezas. É um lugar tão bom, calmo, maravilhoso! E ainda é perto de lagoas e praias para o lazer de todos.

As crianças, quando não estão na rua brincando, só tem esses lugares para recorrer como espaços de diversão, e não poderia haver melhor. Com suas águas límpidas, as lagoas resplandecem à luz do sol. E a praia, quase deserta, pois poucos a conhecem, é o melhor lugar para passar uma tarde boa e muito tranquila.


Sua vida é dedicada à sua família, cuidar deles é a sua profissão. Enquanto explica com ternura suas responsabilidades de mãe, de líder, uma menina bem pequena, que chega tropeçando a cada pequeno intervalo de passos e tem uma chupeta azul bem presa entre seus lábios, começa a bater nas pernas de Erika com um controle remoto, utilizando, aparentemente, o máximo de força que detém. “Calma, já já mamãe vai lá colocar a sua Peppa”, ela responde com paciência.
Sem se perder em sua fala, continua, mas muda de assunto, quer fazer suas próprias denúncias agora. A segurança, em sua opinião, é o segundo pior problema, a poeira está sempre em primeiro lugar. “Morre um aqui e a polícia não chega”, enfatiza. O carro de polícia só passa uma vez por ano e o resto das rondas são privadas, para os donos de mercearia e amigos das redondezas. 
Também está ciente do lixão que Parnamirim fez do seu lar, e diz que isso já é de muito tempo, no entanto, infelizmente, não tem o que fazer para impedir que suas terras sejam invadidas pela sujeira de desconhecidos. “O jeito é pedir a Deus que use os políticos para melhorar”. Sua fé religiosa não é refletida na política. Não acredita que eles sejam capazes de mudar, de fazer o bem a população por si sós. Então pede a Deus.
Um cachorro sai de dentro da casa e se deita em um canto da varandinha, próximo a uma cadeira de balanço feita de cordões de plástico transparente e verde. Ela comenta que ele só fica aí dormindo, mas às vezes sai e vai passear pelas redondezas. Não se incomoda, sabe que ele vai voltar, além do mais, profetiza: “Melhor que tá preso. Ninguém quer tá preso”. O peso de suas palavras não foi medido, mas tem um significado pleno.
Pleno porque reflete a realidade: nenhuma pessoa quer ter detida sua liberdade. Mas é assim que muitos acreditam que devam viver os habitantes de favela, pois o preconceito que enfrentam é descomunal; apesar das casas de alvenaria.

UM CASTELO DE CONTO DE FADAS



Chegou a hora de subir o morro e conhecer as casas mais novas da comunidade do Vietnã. A ladeira é bem estreita e escondida entre duas esquinas; íngreme e toda arenosa. Não é um caminho fácil de trilhar, contudo, ao final de grandes jornadas há sempre grande recompensa. Havia muito mais do que isso acima daquela gigantesca duna.
Dona Maria Gabriela é uma senhora radiante e muito educada. Muito satisfeita com uma quebra em sua rotina, que a prende o dia inteiro sentada em uma cadeira de balanço na varanda, é a primeira pessoa que me convida para entrar. 
Ela coloca a cabeça para dentro do portal da casa e chama por sua filha Valdelúcia, que vem vestida em um pijama branco com moranguinhos bem vermelhos estampados. Por enquanto estão só as duas em casa.
Valdelúcia é morena, seus cabelos são castanhos, longos e desajeitados. Um piercing cintila na pontinha do nariz. Ela fica encostada na soleira da porta por um tempo, depois vai sentar no braço de um sofá do lado de dentro da casa. 
Sentamos, eu e dona Maria, em sua varandinha, onde há 4 cadeiras, cada uma mais diferente da outra. No pé da escadinha que leva à essa área há um pequeno caldeirão acima de uma lata de tinta grande e retangular, na base da qual estão depositados carvões em brasa. Ferve feijão branco dentro dela e a fumaça corre na direção de dona Maria. Eu a ajudo em sua mudança de lugar.
Essa senhora tão amistosa mora com suas duas filhas, Valdelúcia e Maria Lúcia, e três netos, Richardson, Igor e Luanderson. O cantinho custou apenas 3 mil reais, mas no começo era apenas um quartinho, um banheiro e a cozinha, ela quem ampliou e construiu todo o resto: mais quartos, uma área de serviço, quintal, varanda. 
Elas gostam muito de morar lá, é tranquilo, não há muito o que fazer, todavia, vive-se muito bem. Ou quase. Dona Maria é acometida por desgraças em sua saúde: tem diabetes e catarata, praticamente não enxerga. Ela não sabia que o SUS cobria os gastos da cirurgia da qual necessita.

A renda da família consiste basicamente na aposentadoria de dona Maria e na pensão que recebe da aposentadoria de seu falecido marido. Valdelúcia conta que só trabalha às vezes, na maioria dos dias também fica em casa o dia inteiro. 
Enquanto conversamos, ela ri, diverte-se, conta seus casos, misturando minhas perguntas com suas histórias. Em determinado momento, sua expressão fica séria e ela diz: “Mas eu quero saber mesmo é se você come mangaba!”. Acontece que essa senhorinha vende a mangaba que cresce em seu jardim. E não cresce só mangada, tem árvore de tudo o que é coisa naquele pedacinho de terra arenoso. Tem limão, tamarindo, manga.
De repente, ela deixa sua fala no ar e sussurra: “Vendiam droga aqui perto, mas bem quando a gente chegou a polícia prendeu”. E logo em seguida muda de assunto, começa a descrever como fez para transformar o pequeno quartinho na fortaleza que é hoje em dia. Anima-se: “Entre! Venha conhecer!”, e dispara porta a dentro, com inacreditável vigor. Peço licença à Valdelúcia, ainda sentada no braço do sofá, e acompanho dona Maria pela casa.
Logo na entrada há uma pequena sala de estar, com dois sofás cobertos com capas pretas estampadas com grandes flores vermelhas e franjas na parte dos pés. Bem atrás do que Valdelúcia estava sentada há um portal (logo percebi que quase não há portas naquela casa) que dá para um quartinho mobiliado com uma única cama de solteiro, forrada com um lençol rosa florido. No final da salinha há outro portal para outro quarto, dessa vez com uma cama de casal. O sofá que está de frente para a porta serve de divisória para a cozinha, repleta de armários verdes e brancos, muito organizados e perceptivelmente novos. Ao lado deles há uma pequena geladeira.
À esquerda da cozinha há uma porta, que dá para uma área de serviço, e também um portal, que dá para um banheiro. Seguimos na direção da área de serviço, repleta das mais variadas coisas: uma mesa de madeira rente à porta, onde estão empilhadas as mais diversas coisas, desde um pote de plástico transparente com biscoitos a panelas cobertas com panos, uma delas estava coberta com uma camisa infantil do Ben 10; de frente para a mesa, uma grade bancada cobria a parede. Na bancada havia tanta coisa que nem se conseguia registrar; embaixo, coberta por um pano, uma gaiola dentro da qual dois pintinhos piavam desesperados. 
Em uma das extremidades havia um amontoado de panelas, muitos panos caindo pelo teto, brinquedos, roupas. Na outra, uma pia, com bancada grande, abarrotada de louça por lavar e um armário ao seu lado, já repleto de louças de cima a baixo.
A área de serviço tinha um cheiro muito forte de mangaba e dejetos de galinha. Falando em mangaba, logo Dona Maria abriu um saco para nos mostrar a qualidade da mangaba que vendia e não hesitou ao enfiá-las bem debaixo de meu nariz para que eu pudesse comprovar como ela era boa.

Voltamos à varanda. Valdelúcia, que durante o tour pela casa havia sumido, trocara de roupa e agora vestia um short jeans escuro e uma camiseta branca, quase transparente, que permitia o vislumbre de seu sutiã manchado de preto com branco. Dona Maria voltou a contar suas histórias.
Ontem havia ido para a igrejinha das redondezas, localizada quase na beira da praia, para uma comemoração de Dia das Mães, na qual ganhou um estojo e um faqueiro. Até dançou forró! E todo mundo dançou: “Até as sapas foram dançar, e os sapo? Os sapo não, só as sapa porque era Dia das Mães!”.
O assunto, em seguida, fica sério, voltamo-nos aos problemas da comunidade. Enquanto na parte debaixo da favela o principal problema é a poeira trazida pela rua, lá em cima é a falta de energia e água, que chega só às vezes. A iluminação é muito ruim, praticamente não tem. “É tudo escuro”, diz dona Maria. Na verdade, lá em cima, só elas e o vizinho conseguem energia elétrica, os outros se viram como podem.
Em determinado momento entrou um gato no terreno e começou a perambular pelo local, como se fosse seu dono. Elas comentaram que não lhes pertencia. Desde que um primo tivera calazar, não se criava mais animais naquela casa, só as galinhas mesmo. Dona Maria, muito tristonha, revela que teve que dar um cachorro lindo que adorava.

E assim é a vida na Favela do Vietnã.
É difícil para quem não vive nessa realidade entender como eles conseguem ser felizes sem esbanjar dinheiro, sem moradia de qualidade, sem assistência. Mas são. Ou parecem ser. Diferente dos alicerces da sociedade, eles não mudariam de vida se tivessem a oportunidade, são satisfeitos de verdade com tudo o que conquistaram, com o lugar onde moram. Um sentimento que muitas pessoas ainda precisam aprender.
O dia a dia nessa ínfima comunidade é como o de todos. Não há nada de tão diferente em suas vivências, são apenas mais difíceis do que as de muitos, mas para eles são normais. Foi assim que todos os habitantes com quem tive o prazer de conversar me descreveram seu cotidiano: normal. O normal para eles pode ser diferente do nosso, mas é normal.

É natural para eles lutar pela sobrevivência todos os dias, agarrar na esperança de que vai ser possível lidar com todos os pagamentos do final do mês. Quando algo se repete com muita frequência, vira normal, e foi isso o que aconteceu na pacífica Rua da Esperança, onde uma batalha constante é travada para que a vida possa ser vivida, mas não é uma batalha, é a vida. É normal.

Imagens: Arquivo GRUPERT

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