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Carnaval e Tuiuti


Por Luiza De Paula

Desfile Paraíso do Tuiuti 2018. Foto: Leandro Milton/SRzd
Era início de Fevereiro, na semana do carnaval, quando adoeci. Repouso absoluto, ingestão de água em demasia, alimentação semelhante à hospitalar - um verdadeiro caos para quem é adepta à correria diária, com caráter quase hiperativo, simpática ao paladar agradável do sal e descuidada quanto a necessidade de hidratação. 2018 surgia mostrando a sua outra face. Vamos à luta! 

O segundo dia de carnaval começava cinzento na terra do sol, afinal, já ao nascer da manhã, escutei amistosamente o discurso de funcionários do judiciário na defesa  da necessidade do recebimento do auxílio moradia àqueles que carecem de um teto qualquer para resguardar-se: a classe política, os juízes, promotores toda essa gente marginalizada e desamparada. Sobrevivi!

Como tudo na vida, a indignação de ouvir o indefensável  custou a passar, mas logo em seguida veio a bonança: presenciei pelo meu televisor o desfile de uma escola de samba que, em meio a minha ignorância absurda, nunca tinha ouvido falar: a “Paraíso de Tuiuti''. Pronunciar esse nome ainda é um verdadeiro trava língua, t-u-i-u-t-i. Confesso que liguei a televisão um pouco chateada por não poder assistir pessoalmente  aos desfiles das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Fim de carreira não estar lá pessoalmente, pensava eu. Tão fim de carreira quanto ter que  passar seis meses sem beber. 

Jack Vasconcelos, Claudio Russo, Moacyr Luz, Jurandir, Zezé e Anibal me surpreenderam de modo, magistral e emocionante. Um amigo no Twitter me avisou que a referida Escola trataria em seu enredo de graves questões sociais. Quem diria que um aviso despretensioso me causaria uma verdadeira catarse ao ser presenteada com o desfile? O Paraíso de Tuiuti abordou de modo impecável  a mais desumana, insensível e perversa instituição criada pela humanidade: a escravidão.

O samba-enredo nos questionava com uma pergunta retórica: 

Meu deus, meu deus, está extinta a escravidão? (…) Senhor, eu não tenho a sua fé e nem tenho a sua cor. Tenho sangue avermelhado. (…) Meu deus, meu deus, se eu chorar não leve a mal, pela luz do candeeiro, liberte o cativeiro social.

130 anos de uma libertação meramente formal, ao embalo da letra seca da Lei Áurea, aos escravos. Saíram dos engenheiros e, sem nenhuma inserção no mercado de trabalho e indenização, foram ocupar as favelas e permanecem até hoje.

Aqui no Brasil a Casa-Grande sempre sangrou ao ver voar a Senzala. O cenário só fora transfigurado: os que morriam nas duríssimas travessias dos navios negreiros, hoje são verdadeiramente dizimados pelo afastamento voluntário e consentido do Estado nos morros e nas favelas; pela nossa apatia e omissão enquanto cidadãos e, sobretudo, pela persistência de uma mentalidade escravocrata e racista no seio de parte majoritária da sociedade na qual foi umas das derradeiras nações a abolir a escravidão. Falhamos miseravelmente enquanto seres humanos e enquanto construção de uma identidade nacional. 
     
O mais estarrecedor é que em 2018 continuamos falhando sob o argumento da implantação do “progresso’’ - isso mesmo, o neoliberalismo. E em meio tudo isso, o Tuiuti entrou na avenida bradando a luta e a resistência, tipo a de Dona Rupina, de 92 anos, uma negra forte que estava desfilando belamente e cantando alegremente o hino da Escola. 

Nos mostrou, ainda, a necessidade de um olhar atento para os califas brasileiros do século XXI, representados no desfile pela caracterização de Flávio Rocha. Direcionou cirurgicamente o nosso olhar para os magnatas da confecção que lucram, por vezes, em cima do trabalho escravo - alô Loja Animalle, Lelis Blanc, Zara, Marisa (e vamos parar por aqui para a lista não ocupar toda esta crônica). 

E quem pagará o pato da Fiesp? E a crítica ambientalmente incorreta ao clamar sutilmente pela prisão dos tucanos? E uma ala exclusiva para os ‘’guerreiros da CLT’’? E o discurso de esperança? E mesmo assim, ainda somos âncoras em meio ao estremecimento de uma provável catastrófica reforma da previdência, a parcela manipuladora, oportunista e elitista do poder judiciário e da mídia. Ainda assim, sobrevivemos à escravidão contemporânea, a Michel Temer - o vampiro retratado pela Escola - ao pato da Fiesp. 

Mas, sinceramente, não sei se me manterei firme à apropriação das cores verde-amarelo pelos paneleiros  contrários - seletivamente - à corrupção. Este ano tem copa, o que me preocupa bastante! A camisa do Brasil virou fantasia de manifestação. Outra situação que anda me preocupando bastante, são as eleições. Bolsonaro. Apologia ao Coronel Ustra. Misoginia. Preconceito. O Huck que migrou da ficção e arrisca adentrar na política. Collor, nosso presidenciável, e a mais deslavada falta de semancol. A demagogia. O Brasil de Volta ao Mapa da Fome… 2018. 

Mas aí descobri o Paraíso de Tuiuti, nome o qual ainda estou me adaptando a falar e a escrever, que me deu um orgulho danado, pelo menos por alguns instantes, de ver os desfiles das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. É que tem todo aquele problema de corrupção envolvido nesse carnaval, aí a gente fica com  um certo mal-estar. E ainda por cima doente. E para completar, quando ainda estava digerindo a defesa do auxílio-moradia.  Foi difícil, mas o belíssimo samba-enredo e a irreparável encenação me fizeram vibrar o coração, voltar a crer - por alguns instantes – no nosso povo e eu, que nem curtia muito a ideia de assistir apenas pela TV aos desfiles dessa praia localizada na Marquês de Sapucaí, fiquei tão maravilhada e extasiada com a apresentação da Tuiuti que é como se eu tivesse com um dedinho lá no sambódromo.

Ah, o Carnaval... mesmo pela TV!

5 comentários:

  1. Ja compartilhei e acho super criativo você ter escolhido escrever crônica. Ficou dinâmico. Como diria em recife " boto fé em você" 😉 Ainda estou radiante com este trecho,"Direcionou cirurgicamente o nosso olhar para os magnatas da confecção que lucram, por vezes, em cima do trabalho escravo - alô Loja Animalle, Lelis Blanc, Zara, Marisa (e vamos parar por aqui para a lista não ocupar toda esta crônica). " me fez refletir...👏👏👏

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  2. Bela crônica. Um fato curioso Luiza, que poderia até estar no texto, é o de que a Escola usou como base a obra A Elite do Atraso do Jessé Souza (aquela que Graça abordou em uma aula).
    E que venham mais textos como esse! ;)

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