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A cultura do Estupro

Por Ana Flávia de Melo

Sexta-feira, 20 de maio de 2016. Uma jovem de 16 anos vai a um baile se divertir com as amigas. Nessa mesma festa é sequestrada, e logo após estuprada coletivamente por 33 homens. O vídeo da violência foi postado no twitter, na conta de um dos criminosos. Nele, os violentadores tiravam sarro da garota desmaiada, mostravam-na completamente dopada, nua e machucada. "Engravidou de mais de 30", disse um deles no vídeo.

A postagem gerou uma comoção nacional na internet. Números, sites, emails, qualquer plataforma de denúncia foi utilizada para tentar divulgar o crime e denunciá-lo à polícia. Uma hashtag foi criada nas redes sociais para dar apoio (#QueroUmDiaSemEstupro). Ao mesmo tempo em que milhares de pessoas se viam chocadas e aterrorizadas diante de tanta monstruosidade, outros somente riam, tiravam onda, satirizavam e culpavam a garota pela violência cometida. Os próprios estupradores comentavam em suas redes sociais: "Amassaram a mina, intendeu ou não intendeu kkk?"

Ontem, 26 de maio de 2016, a jovem foi levada ao hospital para fazer exames. Foi achada essa segunda-feira, 23, depois do crime, em Praça Seca, zona oeste do Rio de Janeiro. Alguns dos criminosos foram presos e estão sob custódia enquanto o resto das investigações ocorrem. Ontem, a Ouvidoria do RJ recebeu mais de 800 denúncias contra o caso. A família da vítima se declarou em choque. 

Por mais que o caso tenha sido horrendo e desumano, uma quantidade exuberante de pessoas agiu como se fosse algo rotineiro. Não há uma preocupação, não há uma mobilização significativa. Passa como se fosse mais uma notícia corriqueira. Quando não, vira motivo de piada. Isso nos traz ao ciclo da cultura do estupro — a vítima é atacada e violentada, então ela denuncia, é culpabilizada pelo ato e tudo volta ao normal até que aconteça novamente e ocorram as mesmas coisas. 

São os mesmos argumentos de sempre: "Olha a roupa que você vestia", "Por que você estava andando sozinha?", "Se não tivesse bebido...", "Foi dar cabimento, aí já viu", "Se você tivesse ficado em casa nada disso teria acontecido", "Ah, ela é uma prostitua, estava pedindo".  A vítima, a mulher, é humilhada, questionada e diminuída. Seus argumentos, sua dor, nada disso consegue convencer os outros. A culpa é dela, homens são animais irracionais e vivem por seus instintos, ponto final. 

Aqueles que enchem a boca e dizem que não são machistas, que não aceitam o machismo, dizem por aí que mulher não pode sair sozinha. Que isso ou aquilo não é "coisa de mulher". Perguntam se a amiga já foi "lavar a louça". Ou dizem coisas como: "Isso é falta de rola". Quando questionados ou repreendidos sobre suas "brincadeiras" soltam: "Você não sabe brincar".

Uma verdade para você, querido amigo(a) não-machista: você é machista sim, e suas brincadeiras mantêm esse ciclo vicioso que você tanto diz que não faz parte.

Os casos de violência contra a mulher são frequentes, muitos deles bizarros e chocantes, mas depois de um dia somem da mídia. Governantes, que tanto prometem dar "futuro" ao país, promovem projetos de lei que impedem e burocratizam cada vez mais o alcance das vítimas à justiça. Temos um desses projetos correndo pelo plenário, esperando pela votação, cujo objetivo é penalizar quem induzir qualquer mulher ao aborto, inclusive aquelas grávidas por causa de estupro. A clara desigualdade, o feminicídio, a violência e as questões de gênero são minimizadas e criminalizadas. Tá bom do jeito que está, não é?

Para aumentar ainda mais os casos de normatização e relativização, o nosso novo Ministro da Educação, Mendonça Filho, recebeu Alexandre Frota ontem, 25 de maio, para uma reunião onde discutiram medidas educativas. Alexandre Frota, que nada tem de educador ou qualquer coisa do tipo, assumiu um estupro a uma mãe de santo na TV um ano atrás. A plateia e riu e aplaudiu; o Ministério da Educação, pelo visto, também. 

Qualquer coisa que envolva a mulher é de menos importância, ninguém divulga, ninguém se preocupa em ir mais a fundo. Num país onde um filho bastardo de um jogado de futebol é mais importante do que a morte por esquartejamento de adolescentes após serem violentadas, acontecimentos como esse se tornam batidos e até mesmo sem graça. Se as feministas sem revoltam é manha, é frescura, é falta de "casa para arrumar". 

Temos de nos preocupar com isso. Centenas de mulheres todos os dias são violentadas e assediadas nas cidades brasileiras por pessoas estranhas, por conhecidos, por namorados, por amigos da família. Elas são alvo de barbaridades, violência psicológica e física. O trauma as carrega para onde elas vão. Muitas, novinhas, crianças com poucos anos de idade, não sabem nem que estão sendo assediadas sexualmente. No futuro, quando elas lembram, passam a entender e conviver com o choque do que as aconteceu.  Numa declaração anônima à hashtag levantada, uma vítima conta:

"Eu estava tomando banho de piscina, minha mãe a poucos metros, conversando com outras pessoas. Então esse “amigo” se aproximou de mim. Chegou e me tocou. De início, eu não entendi. Achei que ele estava querendo chamar minha atenção, que queria me dizer alguma coisa. Eu era inocente. 'O que é?!',  eu perguntava. 'Shhhh!', ele queria que eu ficasse quietinha. Então ele colocou a mão por dentro da minha roupa de banho. Começou a me estimular. Queria me masturbar. Eu não entendia o que era aquilo, mas senti vontade de chorar. Aquele era meu corpo, ninguém podia tocar ali."

Nós, mulheres, desde pequenas somos ensinadas a como nos comportar, o que vestir, como agir, o que dizer, o que não dizer. As mulheres são moldadas dentro de uma caixa de boneca  e se elas saírem são castigadas. Os castigos são violentos e aprovados pela sociedade. A mulher que decidir não pertencer a esse grupo de bonecas de plástico estará fadada à balburdia. 

Em contrapartida, os homens são ensinados a namorar, beijar, "pegar" quantas quiserem, dar apelidos "fofinhos" e "amigáveis" às mulheres, a beber, a coçar o saco e mandar a mãe fazer a comida. O respeito ao sexo oposto passa longe, e eles se vêem repetindo os atos dos pais, dos avós e dos tios na rua: gritam por mulheres nas calçadas, buzinam, falam coisas grotescas, passam a mão em partes íntimas. E eles sabem que jamais serão culpabilizados. A mulher ganhará a culpa, porque, na real, ele só estava sendo um homem, não é mesmo?


É por isso que os movimentos pró igualdade de gênero existem. Não queremos privilégios — queremos respeito. Queremos poder sair nas ruas sem ouvir coisas desagradáveis; queremos passar por lugares cheio de homens e não sermos seguidas por olhos famintos; queremos ter a liberdade de poder escolher fazer o que queremos, seja sendo dona de casa, seja trabalhando como striper, seja simplesmente não querendo seguir as regras impostas; queremos beijar quantos homens ou mulheres nos der vontade sem sermos taxadas de putas, vagabundas ou prostitutas. Queremos ser tão vivas e poder tanto quanto os homens. 

Não são privilégios, são direitos. 

Temos de parar de segregar a sociedade. Não existe isso de um sexo pode e outro não pode. Todos nós, independente do biológico, somos humanos. O respeito deve ser mútuo. Se o que mais nos diferencia dos outros animais é a nossa capacidade de raciocínio, por que não a usamos? Não há explicação racional para os atos. 

De fato, nós somos seres sexuais. Convivemos todos os dias com apologias, fotos, músicas, namoros, pessoas. A atração é algo do ser humano, mas a barbárie não. Independente de quantos hormônios estejam em ação por nossos corpos, nossas ações não são controladas por eles. Não são eles que nos fazem agir, é o nosso cérebro. O ato de assediar alguém não é instintivo, é proposital. Se faz porque quer, porque gosta de ver o desconforto, porque foi ensinado que agir assim é aceitável. 

Mas não é. E não podemos continuar relativizando. O feminismo é repudiado, mas não será calado. Enquanto houverem mulheres sofrendo violência, seja doméstica, moral ou sexual, nós não pararemos. Enquanto a desigualdade de gênero existir, nós estaremos lutando por nossos direitos. 

Só cabe a você escolher de qual lado vai ficar.




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