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Crônica do Era uma Vez

Por Tázio Silvestre


Costumam dizer que “era uma vez” é o método infalível de iniciar uma narrativa de conto de fadas. Porém, adquirindo um pouco de vivência, creio que vivo em um preâmbulo fantasioso todos os dias, como um ciclo vicioso e infortúnio – às vezes, a propósito, é glorioso. Uma roda sempre está passando por cima de mim: era uma vez o ônibus que peguei hoje para ir à faculdade, era uma vez uma discussão em sala sobre a PEC 241, era uma vez um estágio (dos muitos) que não deu certo... 
Diferentemente de uma estória traçada com princesas e príncipes, montados em um cavalo branco, rumando em direção ao castelo deslumbrante lá longe no horizonte, a realidade me arranca do conforto e me joga no mundo real. Princesas são o sinônimo da futilidade; o príncipe se apresenta como sapo em nosso caminho; os castelos são possíveis realizações que se concentram, muitas vezes, sobre uma montanha de papéis e perguntas intermináveis em uma sala – obrigando-me a me portar como pessoa padrão. A bruxa má, maquinando como fará o “felizes para sempre” não acontecer, está ao meu lado, de mãos dadas comigo, como uma velha amiga que me acompanhava no parquinho quando criança. Ela não tem, contudo, uma pele rugosa, feridenta, nem o nariz com deformidade – tampouco uma postura corcunda. Eu me deparo com essa personagem todas as manhãs quando acordo: ela sou eu e eu sou ela. Não digo, caro leitor, que me apresento nela, mas a bruxa faz parte de mim, assim como todos os outros elementos e personagens fantasiosos.
Sinto o vento roçando as maçãs do meu rosto e o galope do cavalo. Os galhos das macieiras atrapalharem meu cavalgar. Busco de forma ensandecida me desvencilhar da bruxa atrás de mim, conforme avanço floresta adentro, mas há apenas pequenas frestas de luminosidade devido ao sol. As árvores interceptam a luz e o ar se torna mais agressivo à medida que ajo contra ele, indo na direção oposta. Viro para vislumbrar a silhueta da bruxa, e me encontro no lugar dela – estou fugindo de mim mesmo.
No momento seguinte, torno minha atenção para a frente e vejo algo que aterroriza de tão familiar que é: eu estou um pouco mais distante, em pé, perto do final do túnel que as árvores formam e, gradativamente, a bruxa se aproxima. Logo depois é a vez da princesa e do príncipe... Todos eles estão ao lado do meu outro eu. Algo curioso acontece: meu cavalo para a poucos metros e me encontro obrigado a descer da sela e testemunhar um dos eventos mais lindos da face da terra, daqueles que o caos se torna belo, em que a redenção toma para si o perdão: os personagens do conto de fadas se fundem à pessoa igual a mim, tornando-se carne e osso dela.
Num átimo, encaro-a e levanto a mão direita para tocá-la, por uma genuína curiosidade que me enreda, e ela faz os mesmos movimentos que eu. Nossos olhares se encontram e se fitam por um pequeno momento que perdurou por eras a fio até que a ponta dos dedos se tocam... E eu não sou mais eu, ao mesmo tempo que sou. Integralizo, pelo que percebo, uma conjuntura que comporta mais corações e pensamentos que jamais pude cogitar.
Divergindo do final previsível dos contos de fadas, não sei o meu “felizes para sempre” porque estou em uma constância frenética de começos e términos, de chegadas e partidas, ao passo que me muno involuntariamente de fantasias tão reais que elas são eu. Não consigo olhar para os múltiplos e infinitos contos de fadas particulares sem pensar no meu reino encantado. Afinal, desbravar limites de mim mesmo é ir além e criar novos personagens que me cortarão e curarão enquanto as linhas se formarão e os “era uma vez” se recomporão para novos começos – e finais.

Imagem: ObviusMag

Um comentário:

  1. Nossa... Profundo. Lindo. Inspirador. Um retrato de nós mesmos em contraste com nossas distorções da realidade.

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