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Rua cinza, povo mudo

A arte presente nas paredes e muros de Natal como forma de expressão política e resistência

Por Henrique Mendes e Tiago Silveira

“O que ofende mais é o olhar das pessoas do que a tinta na parede. Porque tinta na parede não machuca ninguém”, define o grafiteiro Paulo Victor, 25, mestrando em Ciências Sociais e estudante de Artes Visuais. Ele defende que grafite é forma legitimada de expressão artística nas paredes e muros do espaço urbano, seja com spray, carvão ou pincel.

Mural de grafites: à esquerda, Vivi Fujiwara; à direita, Rodrigo Palmares; Paulo Victor no centro (acervo pessoal)
Quando começou a se interessar pelo grafite, Paulo deparou-se com a falta de apoio da família, mas  encontrou esse apoio  nos amigos, que o incentivaram a pintar e produzir. Em 2013, começou de fato a pintar, e diz que demorou  até conseguir dinheiro com seus trabalhos e que ainda hoje encontra essa dificuldade. “Porque, na nossa sociedade, o grafite é visto como arte, enquanto a pixação é vista como crime, vandalismo, embora ambos sejam parte do mesmo universo”, reflete ele.

Esse universo a que Paulo se refere é o da arte urbana. O universo das manifestações artísticas desenvolvidas no espaço público, da apropriação desse espaço para intervir nele e atribuir-lhe novos sentidos e funções, ressignificá-lo. Universo do qual faz parte o Grafite, mas também fazem parte os teatros de rua, os malabaristas e outros artistas circenses, os músicos e até as estátuas-vivas.

A arte urbana, ou street art, enquanto movimento possui suas raízes na cultura underground de fazer inscrições nos prédios públicos à revelia das autoridades e dos proprietários - em oposição ao conceito de arte urbana ligado aos movimentos de urbanismo culturalista caracterizado por buscar o refinamento no planejamento das cidades, o que depois convencionou-se chamar de arte pública. Toda expressão criativa no espaço público, feita à margem das instituições oficiais, é considerado como arte urbana, que ao longo de sua história tornou-se um fazer artístico e passou a abarcar uma série de técnicas que vão desde o grafite propriamente dito até o estêncil, passando por adesivos (sticker art) e cartazes de lambe-lambe.


Cartazes de lambe-lambe na Rua Chile, Natal (Fotos: Henrique Mendes)

Grafites de estêncil na Avenida do Contorno, Cidade Alta, Natal (fotos: Jonathan Alves)
O grafite de um modo geral, como arte contestadora, encontra-se sob estigma de marginalização, estereótipos, preconceitos e dificuldades de aceitação, criados por um pensamento das classes dominantes que controlam a chamada alta cultura. Isso se expressa, por exemplo, na recente ação do então prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB), que apagou parte do mural de grafites da Avenida 23 de Maio, um dos mais tradicionais da capital paulistana, como parte de um programa chamado “Cidade Linda”, apontado como sendo de caráter higienista.

O Sul e o Sudeste ainda são os principais polos de grafite no Brasil, mas o Norte e o Nordeste mostram qualidade nessa arte, e o Rio Grande do Norte está dando seus primeiros passos e evoluindo. Paulo Vitor destaca a necessidade de se acompanhar o crescimento do grafite na nossa região, para que ele seja acompanhado de qualidade. “Meu objetivo é que nossas autoridades nos paguem para pintar viadutos, para fazer uma cidade mais colorida, menos violenta”.


Grafites em painel na Avenida do Contorno, Natal (fotos: Jonathan Alves)
O olhar das autoridades em torno da cultura urbana de uma maneira geral, entretanto, não parece ser muito amistoso no momento se colocado em perspectiva ainda mais recente o atentado de um motorista contra uma massa de skatistas numa manifestação na Rua Augusta, ao que foi respondido oficialmente (pasme!) com a punição aos manifestantes por supostamente estarem fora do horário combinado com a prefeitura para a manifestação.

Com isso vemos que todo um universo cultural é criminalizado sistematicamente.  E assim vem sendo ao largo de toda uma tradição jurídica em que a legislação brasileira considera o grafite e a pichação sem autorização do Estado como prática criminosa enquadrada no artigo 65º da lei 9.605/98, que prevê detenção de três meses a um ano e multa. Essa lei foi alterada pela 12.408/2011 que descriminaliza o grafite, dispõe sobre a proibição da venda de tintas aerossol para menores de 18 anos, mas mantém a pixação como crime e torna mais rigorosa a punição para as manifestações que forem feitas em prédios ou monumentos tombados pelo patrimônio. Essa lei traz o ineditismo brasileiro em separar oficialmente grafite e pixação, que em qualquer parte do mundo não sofre essa diferenciação: grafitti¸do italiano, significa algo como ‘riscar sobre a parede” e é usado para descrever as duas formas de representação em qualquer idioma.

Ademais, a pixação no Brasil é enquadrada também na Lei de Crimes Ambientais. “Normalmente, quando você vai pintar, pixar, grafitar o que você mais vê é lixo na rua, lixo em todo canto, e a pixação que é o crime ambiental? Alguma coisa tá errada”, replica o artista Paulo Vitor. Não são poucas as vozes que consoam com a dele no sentido de achar que a legislação brasileira, neste e em outros aspectos, precisa ser revista e rediscutida. Em sua tese de mestrado intitulada Subversão das paisagens - do canto do grafite ao grito da pixação a geógrafa Julia Monteiro Santos diz que “ a legalidade em nossa sociedade está intrinsecamente ligada a valores burgueses e capitalistas. Nossa lei é carregada de uma moral machista, sexista e branca”.


Grafites de temática crítica em mural na Avenida do Contorno (fotos: Jonathan Alves)

Mural de Paulo Victor (Acervo Pessoal)
Paulo alude ao fato de ser parte de uma coletividade, “sermos muitos em um só”, e por isso ele é pouco afeito ao conceito de identidade, prefere a ideia de estilo, caracterizando seu grafite como híbrido, pois trabalha com letras, personagens e mandalas, e destaca sua paixão por estas últimas, que representam as formas orgânicas e geométricas da natureza. “Me interesso por esse contraste extremo entre cidade, uma coisa mais geométrica e dura, e natureza, uma coisa mais orgânica e leve”, responde ele sobre o que caracteriza seu estilo.

“Fazer arte em si é um ato de resistência”, assinala Paulo Vitor sobre a dificuldade de o artista fazer e viver de teatro, dança ou arte visual.


Mulheres no grafite


Foto: acervo pessoal Consuelo Oleusnoc
Apesar de vivermos sob um regime democrático, esta “democracia” é restrita a certos grupos. A rua, por essência, deveria ser o espaço urbano mais plural, pois ao mesmo tempo não tem dono e é de todos, no entanto ela ainda carrega, por exemplo, pesadas máculas de uma sociedade misógina, sexista e machista. A artista visual de 23 anos Consuelo Oleusnoc diz que suas intervenções na paisagem urbana, com grafites feministas que ajudam a desconstruir os papeis de gênero e que reforçam o empoderamento do corpo feminino, servem para dar voz às mulheres, historicamente invisibilizadas. “É um espaço bem marcado pela presença de homens, mas é um espaço das mulheres também; é uma forma de dizer que a gente existe”, diz.

“Eu não conheço nenhum cara que tenha seu trampo censurado”, sentencia. “O meu e de outras grafiteiras são censurados”.  Consuelo diz que as pessoas passam tinta sobre seus trabalhos, os silenciam.

“Minhas inspirações são minhas amigas e todas as mulheres com quem convivo”, diz Consuelo sobre seu processo criativo. A atual conjuntura política também tem influência em seus trabalhos e ela conta que, quando está grafitando, além da repressão policial ser uma constante, pessoas com pensamentos conservadores e retrógrados disparam ameaças.


Trabalhos de Consuelo Oleusnoc (foto:Acervo pessoal)
Consuelo diz que a pixação é uma forma de expressão mais ousada e mais transgressora, pois o grafite é mais agradável e aceito pela sociedade, e dentro desta o pixador é estigmatizado. “Enraizam na sociedade que a gente tem que ter raiva de um ser que está intervindo na paisagem”, completa.

Ao som do rap de Issa Paz, Consuelo Oleusnoc, estudante de Artes Visuais, fala sobre seu Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado há poucos minutos desta entrevista – Meninas que se arriscam por um risco. No texto, Consuelo faz uma historiografia do grafite e da pixação femininas na cidade. “Eu foco em seis mulheres, três grafiteiras e três pixadoras, e falo sobre o início do grafite e da pixação femininas na cidade até a atualidade. Quero tirar essas mulheres do anonimato”, finaliza.


Acima: Grafite na Avenida Gov. Tarcísio Maia (foto:Jonathan Alves) Abaixo: pixação na Rua Chile (fotos: Henrique Mendes)

PiXação, com X

“Já está meio no senso comum dizer que a pixação é crime e o grafite é arte, mas ambos fazem parte da mesma matriz de linguagem. O grafite também tá cheio de letras”, diz Paulo Victor.


Pixações na Rua Chile, Natal (fotos: Henrique Mendes)
No Brasil, a diferença entre pichação (grafada com CH no dicionário) e grafite suscita o debate entre os limites da arte baseado em padrões estéticos. “A pixação é um ato de vandalismo, é uma arte que não foi domesticada, é um ato proibido. E o grafite, não. O grafite é uma pixação mais evoluída, com cores, desenhos, que é liberado. Muitas vezes é liberado pelo dono do muro, ou pela Prefeitura. Para mim, é a mesma coisa, a mesma arte, só que uma é proibida e a outra, não. Em todas usamos tinta”, diz Fino, pixador de 28 anos (o movimento reivindica a escrita com X pelo caráter revolucionário e rebelde que grafar diferente das normas teria).

Paulo Victor também vê a pixação como uma forma de arte. “Só que não é uma arte aceita. Não é uma arte para dizer algo bonito para o transeunte que vem passando. Ela é uma arte agressiva, ela é uma arte que contesta e ofende; ela é uma arte que incomoda. O grafite também tem esse papel de incomodar e denunciar. Porém é esteticamente mais agradável”.

Em comum diante do que se coloca é o que Fino ressalta como sendo “uma luta diária contra o sistema e a sociedade, que nos discrimina”.

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