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Moça do F3

Por Tiago Silva de Oliveira 

Obra "Mulher jovem", de Pablo Picasso.

Chove. Chove muito. Lá fora e dentro de mim. A água derramada envelopa meu velho apartamento com celofane. É brega, eu sei. Mas isso me conforta. Sou brega, eu sei. Gosto de brilho, sapatos lustrosos, estampas difíceis de vestir. Mas meus vasos de flores artificiais estão no armário, todos. Guardei minha breguice. Me guardei. Me tranquei num armário de pele e nervo que aos poucos diminui e me sufoca. 

Estou presa. Claustrofóbica. Me colocaram num estojo de plástico, depois numa lata de leite em pó – ainda com um pouco de leite em pó, sinto o cheiro –, embrulharam, como meu apartamento, em celofane e displicentemente jogaram o pacote em uma sacola de papel de uma loja mixuruca de sapatos. Como disse, estou trancada. 

Há semanas não corto as unhas das mãos e a chuva abafa o caos da vida. Tentei coçar meu olho durante o sono e me feri. Acho que sangrei. Chorei sangue por segundos. Acordei com minhas unhas enterradas em meu couro cabeludo. É que coçava. Minha cabeça queria se abrir e expor a bizarra e sensual nudez de minhas ideias. Arranco escamas de minha pele e isso a agita. Vermelha, talvez está. Um chumaço de cabelo meu está embebido na sopa de ontem no prato de louça branco que larguei quase embaixo da cama. Estou com fome. Minha barriga dói. 

Vomitei tudo quanto pude. Minha essência, arrisco – estava escuro, não posso afirmar com precisão –, é leitosa e um pouco perolada. Lembro que me vi no espelho pela última vez e me assustei. Aquela não era eu. Ou era? Não reconheci. Ainda não sei quem sou. Tenho 38 e isso me conforta. Tenho tempo, embora a vida me destrua. 

Aqui, neste quarto pequeno e escuro, me projeto lá fora. Mas logo volto a mim, à minha própria tempestade. Tenho tudo dessa madrugada chuvosa. Frio, febre e dor e nuvens. Nuvens elétricas. Também tenho rios vazando e enchentes. O vento sopra conta mim e não me deixa caminhar. Estou ensopada de suor, lágrimas e gozos. Tirei a calça porque a vomitei e estou só de blusa. É uma camiseta enorme que odeio, mas que agora me esquenta e me protege. Estou na chuva e só tenho uma camiseta limpa. 

Meu braço escorrega para fora da cama e procura comida. Minha mão encontra o prato da sopa de ontem largado no chão e meus dedos mergulham naquele líquido frio e ralo e a louça estridente corta o silêncio da chuva. Parece que acordei o sol. Aurora, querida amiga, me diz onde está o cigarro ou as bitucas. Eu sei, talvez tenha sido sonho, tem uma boiando no vaso. Mas não quero tragédias nem umidade. A chuva que chove aqui dentro molhou todo o pão com o qual alimento meus pássaros, molhou as cartas, poucas, de amor e meus cigarros. Meu colchão é úmido e velho. Agora tem sangue de mênstruo. 

Levanto da ilha que é minha cama e mergulho na leve escuridão deste cômodo. Meu corpo pesa, é difícil carregar meus ossos. Meus órgãos, quero dar todos, eles pouco me servem. Estes pulmões, malditos, me sufocam o dia todo. Querem me matar asfixiada e sem as delícias do ar. Meu fígado está embrulhado em gordura, fui diagnosticada há três meses com esteatose hepática e a médica disse que devo parar de beber. Jura? Tenho um apêndice, uma vesícula e um siso que de nada me servem. E quem quer, doutora? 

Não sei de onde tirei tanta energia para me espreguiçar como bailarina. Da única janela de meu apartamento fico de ponta de pé. A janela tem uma grade de ferro que às vezes forço para arrancar e sobre ela uma fina tela verde, para barrar mosquitos. É tão feia, coitada! É tão feio olhar através dela para a rua. Um filtro verde e feio. Todo dia estouro uma fibra do barbante com o qual ela está fixada na grade. Estouro com as mãos, pois desse modo não ficará pistas de meu feito com o corte preciso do barbante com tesoura. Essa tela tem de simplesmente se desprender da grade pela força da natureza. Esta chuva generosa vai estourar muitas fibras. Quero estourar muitas fibras nesta madrugada em que todos dormem e ser sigilosa. 

Daqui, a chuva parece agora sensual. Molha devagar a rua. O vento a faz dançar. Os postes da rua têm luz alaranjada e isso doura os pingos. Entre a grade e a tela da janela deixei meio cigarro! Agora está ensopado e gordo. Foi ontem que deixei, quando pensava se descia à rua para comprar analgésicos. Não fui e fui para cama. Dormi e acordei e aqui estou com dor em tudo. Parte é fome, parte é sede, parte é saudade. Saudade do que vivi e do que não vivi e viverei. Viverei? 

Assim, de ponta de pé, coluna reta, cigarro entre dedos e cabelos esvoaçantes e à meia luz, para quem passa no outro lado da rua e vê esta moldura, este busto, vê minha melhor fotografia. A mulher do apartamento F3, misteriosa. Sou misteriosa, sou. A mulher que coleciona vasos, livros, versos e ilusões. Também separo lixo, mas isso não importa. 

Lembrei, agora lembro que tem bolo na geladeira. É uma fatia, não, um pedaço imundo de bolo esfarelado e amassado sobre um pratinho de plástico inútil e branco. Sua cobertura é azul celeste ou turquesa e está para baixo do prato. Não tiveram nem a delicadeza de colocar a parte azul para cima. Não tiveram a delicadeza de me convidar. Era uma festa de criança, eu sei, nem filhos tenho, eu sei, nem ao menos sei o nome de minha vizinha. Ela sabe o meu. Me chamou três vezes – não contei – pelo nome para me dar bolo. Ela que fez, disse. Me deu com as duas mãos aquele prato tão delicadamente como se segura um pássaro que acabara de nascer e eu o recebei tão delicadamente quanto me deu. O bolo tinha várias camadas de recheio mole e brilhante que não consegui identificar com os olhos. Nas bordas do prato, o azul artificial e intenso da cobertura. Era azul. Muito azul. Um azul calmo e muito bonito. Azul. 

Sob – ou sobre - a leve camada azulada tinha uma pasta muito branca e densa e fofa. Talvez sustentasse, em posições fisicamente normais, aquela fina camada azul. Quis colocar o dedo naquela parte branca como quando se quer colocar o dedo no céu e furá-lo para sentir sua textura ou a textura das nuvens. Seu sabor, tinha sabor?, era leve e oco, um pouco doce, mas muito fofo. Tão fofo que a língua goza. Mas parei por aí. Desisti daquela operação. Rapidamente meu corpo enrijeceu e inundou de cólera por ter sido acordada por uma mulher que não sei o nome para me dar um pedaço de bolo azul. 

Mas aqui, esperando o sol nesta janela, oca, desalmada, salivando de desejo, lutando para não pecar, sinto e quero, quero muito aquele bolo. Eu quero. 

É muito doce e dói na boca e eu gosto. O prazer dói e alivia como a morte. Neste momento, morro em silêncio por dentro, me contorço e expando meu paladar. É artificial e é bom, tem abacaxi, sim, é abacaxi e é grudento. Me sinto imunda e grata ao mesmo tempo. Acho que quero chorar de prazer, é choro de morte porque estou viva e sinto isso. Como dói! Esse azul artificial, céus, me deixou mais orgânica. Aquela mulher que me acordou para me dar bolo de aniversário me deixou mais orgânica. Este prato branco de plástico vazio me deixou mais orgânica. 

Esse doce é tão falso que não existe. Agora, só existe em minha boca. Ele só existe se houver paladar. Meu paladar é salgado, por isso o doce dói. Preciso limpar meu paladar para voltar a existir. Comi um bolo falsamente doce e agora ele me preenche e inexisto, sou toda ele e sou falsa. Devorei um bolo falso e agora sou sua essência. Sou ele. Minha garganta grita de sede, bebo água, mas a água apenas me confunde e minha boca ainda está doce. O tempo que a chuva leva para cair das nuvens até meu prédio foi o tempo que comi aquele bolo e sofro por isso. Não tenho nenhum cítrico e minha geladeira está vazia. Café, tenho pó. No fundo do bule em cima da pia está minha salvação, ou enlouquecerei. No fundo, lá no fundo. Solenemente, coloco tudo/nada numa xícara. Café frio de madrugada também dói. Meus dentes tortos escorregam nos grãos triturados esféricos, parece que lambo minha parede descascada. 

Nunca o café foi tão bom depois daquela tarde, quando me chamaste para tomar café numa padaria quase vazia e cheia de mesas. Onde nos sentamos, não sei. Melhor ficarmos perto do ventilador porque está muito quente e até o vento do ventilador é quente. Pediste o menor café na menor xícara. É tão pequena e bonita. Nossos cafés nesta mesa são tão escuros, tão noite e infinito que parecem dois buracos negros e acho que são. São enormes, estou contemplada. Vejo toda a vida que engoliram. Aqui dentro e lá fora. As lâmpadas, os pratos, as colheres e conchas, o açucareiro, uma moça, o céu e a chuva, a vibração das vozes e a rotação da Terra e teu rosto e nós dois. Estas xícaras são o mundo e estamos nele. 

Por que ir embora? Chove e não tens guarda-chuva. Já servirão a sopa e tem pão ou torrada. É torrada, não pão. A torrada já foi pão e não é mais, ex-pão seco e duro. Pão não pode ser pão em condições extremas de temperatura. Ele é torrada. Pobre forno. 

No meio deste universo, entre buracos negros, quero a vibração dos átomos de tua pele. Tuas pernas lambem as minhas como o mar lambe a praia e me riscam. Traçam traços e rotas físicas. De fronte de ti, sob caos e concreto, molho meus lábios secos no verde mar de teus olhos, corremos em praias artificiais e cortamos os pés em conchas e ardemos. Quando nos encontramos, querido, isso é regra, nosso atrito desprende energia suficiente para abrir fendas na Terra e em seus mantos. 

Corre, escorre, transcorre tempo e desejo. Acende uma chama e um cigarro, distribui iscas e quero todas. Domina o fogo, segura com a mão. Filtro entre os lábios, seu prazer é oral e público. Ergue o pescoço para expulsar a fumaça dos pulmões, fazendo bico. Sua boca vermelha, qual fruto maduro sem casca, é quente, pega fogo, fumaça, fumaça no meu peito e bico, derrama seu hálito ardente e doce sobre meu busto. Ah, evento cósmico. O universo se contrai, pulsa. Dilata. Expande. Latejo, aos lampejos anseio, ao encontro de nossas galáxias. Estou úmida, líquida. Me moldo à tua superfície, no abraço me reténs, escorro pelas tuas veredas, absorvo tua quentura, suor, saliva. Somos mistura densa, ácida, alcalina. O coração da cidade pulsa e ferve e assiste a nós dois elevados e nus e perfumados, banhados de suor e gozo, morrendo, sobre nosso ninho enorme flor tão vermelha que é falsa, mas verdadeira, porque nos fere e sangra, a umidade de nossos fluidos seca sob o mormaço e nossos urros, na ferrugem de velhas aspas de ventilador, são triturados e, agora, sussurros. 

A água escorre pelo teu peludo torso, molho as mãos, em teus olhos líquidos e frescos me vejo sorrindo, tua mão quente e suave segura a minha, mergulho em apneia. A liberdade dói. É dor vertical na espinha, dói tanto que arde e divide e multiplica. Liberdade é despir a alma, dançar sobre pântanos, beijar os lagartos mais belos, segurar serpentes. Poder chorar demorado e soluçar e ficar com a fronte vermelha. Saberei que sou livre quando a lágrima mais pesada cair e atingir o sublime.

5 comentários:

  1. Meu deus, que incrível, em todo o conto eu pude sentir cada instante, é como se eu fosse o próprio protagonista .(j soares)

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  2. Muito profundo esse conto e muito lindo

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  3. Eu amei tanto e me identifiquei tanto que nem sei... que dom para escrever!

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  4. Belo texto. Tantas referências interessantes e é muito bonito ver como o autor se entregou às palavras.

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