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Na fila do SUS, de quem é a vez?

*Por Manuela Torres 


Febre alta, dor de cabeça, palpitação e medo de morrer. É uma boa hora para ir ao hospital, onde, teoricamente, há quem possa fazer algo por você. Na prática, também teria, se a quantidade de profissionais e de salas fosse condizente com o número de pacientes. Mas as estatísticas não são boas, e no Brasil, a cada cinco minutos, três pessoas morrem por falhas médicas ou falta de estrutura nos hospitais. São 819 mortes por dia. Mais de 300 mil por ano. 

Ainda que isso pareça uma matéria jornalística, não é. Está mais para um desabafo, um testemunho. O Sistema Único de Saúde, vigente no país desde a Constituição de 1988, é lindo e acolhedor, um exemplo universal. O artigo 196 considera a saúde como um “direito de todos e dever do Estado”, tornando tudo mais justo, visto que o dinheiro que movimenta a nação provém dos impostos sobre os esforços de todos os civis trabalhadores. No entanto, a Constituição não previu a sua mais desrespeitosa inimiga: a corrupção, a própria. 

É como se você tentasse fazer algo certo, mas no meio do caminho tudo desse muito errado. No Brasil é assim sempre. Isso porque o Estado foi fundado no pior contexto possível, em meio às atrocidades éticas mais condenáveis, e, após quinhentos anos, o que temos é uma nação em sua maioria corrupta, com representantes em sua maioria corruptos, sendo que os atos destes últimos impactam em proporções astronômicas, capazes de revoltar a todos os demais. Porém, corrupto ou não, todo mundo adoece. A diferença está no atendimento, e se você pode ou não pagar por ele. O preço é tão alto que a maioria da população não pode custear, e os políticos sequer precisam, pois o plano de saúde vem junto ao mandato. Logo, se um trabalhador assalariado sem condições para um plano de saúde sofre um acidente ou adoece, é bom que não tenha sido tão ruim, senão pode sim, morrer. 

Digo isso porque qualquer um que já tenha posto os pés dentro de uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de uma grande cidade ou capital, diria o mesmo. Desde o irônico “pronto atendimento”, que dura em média seis a doze horas, passando pelo vômito de uma criança no chão há mais de trinta minutos, até a humanidade que há muito já se foi dos funcionários... Tudo é um verdadeiro circo de horrores. Nos olhares dos pacientes se lê medo, chateação e desesperança. Nos olhares dos enfermeiros se traduz impotência, e no dos médicos, eu não sei; nenhum sequer olhou para mim. Então se pensa no Reino Unido, que, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2014 investiu 16,52% dos seus recursos em saúde e pagou 83,14% dos gastos totais do setor; ou no Canadá, com tecnologia de ponta e profissionais capacitados, onde o serviço privado existe apenas para complementar o público. O Brasil dedica apenas 4,66% de seu PIB à saúde e 75% da população depende dessa porcentagem. 

Não estou a escrever para os maus políticos, pois são conhecedores do assunto e conseguem dormir plenamente à noite com os travesseiros repletos de propina. Também não escrevo para os ricos, eles diriam que sentem muito. Muito menos escrevo para os fanáticos, com seus longos discursos de ódio em redes sociais. Escrevo eu apenas para a moça em convulsão aguardando a sua vez em uma fila parada porque a máquina de medir pressão pifou, e porque a burocracia exige que ela seja formalmente medida, ainda que claramente a paciente não aguente muito mais. Escrevo para a mulher que curava a outra com seus cabelos, em nome de Jesus. Escrevo para a enfermeira que cortou o dedo e torceu para não contrair uma superbactéria. Escrevo para a garota que tomou uma injeção na bunda em pé, apoiada em uma maca imunda, e começou a chorar porque não conseguia vestir sua roupa de novo, e ainda tinha gente olhando. Escrevo para a senhora que já havia sido liberada, mas permaneceu na unidade para, voluntariamente, organizar a vez honesta de atendimento dos pacientes, visto que não havia quem o fizesse. E escrevo para a moça que começou a gritar e exigir que fosse atendida até que seu namorado precisasse inventar que ela possuía um diagnóstico de distúrbios cerebrais. Eu poderia escrever para sempre para essas pessoas, mas isso seria muito triste. 

Poetas, jornalistas ativistas, artistas e intelectuais, essa gente não gosta de trabalhar com o eterno, ainda mais quando é ruim. Preferimos acreditar que amanhã bem cedo uns professores milagrosos, como o do livro de Augusto Cury, irão aparecer nas escolas brasileiras e transformar o lugar em um recanto da educação; ou que milhões de notícias falsas não sejam capazes de eleger pessoas de valores horrendos para governar suas nações; que 11 mil médicos a menos em um país tão adoentado pela ignorância não seja motivo para comemorar; e, ainda, que a atendente entenda que não há tempo para medir pressão, já que a máquina quebrou e os seus segundos de tranquilidade são quem decidirão a vida da paciente. Então ela corre até a médica e esta faz o possível para salvar a moça cujo espírito se agarra já sem forças à fronteira da existência e do oculto. Só havia ela para atender a todos, e as pessoas ao redor percebem que isso precisa mudar. Elas vão para suas casas pensando nisso. 

Hipoteticamente, um grupo de pessoas que lá estava se reune para estudar e traçar propostas que façam sentido. Em determinado outubro, a população acolhe tais propostas. O sistema muda ao longo dos anos seguintes. Sem propina, educação e saúde ganham vez. O país começa a se transformar. Um belo dia um político chega em uma UPA, onde é atendido dentro de uma hora, como todos os demais cidadãos. No dia seguinte, está pronto para trabalhar e cumprir seu dever. 

Então os poetas, os jornalistas ativistas, os artistas e intelectuais acordam. É preciso fazer algo além de sonhar, nem que seja escrever uma crítica idiota. E o texto termina assim: “Se perguntarem pelo Brasil, diga que está morto, pois o esfigmomanômetro quebrou”.

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