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“Levante a cabeça e faça o que você tem vontade de fazer”

Sem nunca ter entrado em uma escola para estudar e ter se tornado uma das empresárias mais bem realizadas da praia mais famosa do Rio Grande do Norte, Dona Branca é a mulher que desde cedo luta para conquistar seus sonhos

*Por Gideão Marques


Nos tempos atuais, muito se fala sobre feminismo. Termo relativamente novo mas que sempre esteve presente na vida de muitas mulheres. Aqui no Rio Grande do Norte, nós temos um grande exemplo do movimento, que foi a escritora Nísia Floresta. 

Contudo, há várias outras mulheres que, mesmo no anonimato, se destacam e são exemplos de força, coragem e resistência para enfrentar o machismo e lutar por direitos iguais. Uma dessas mulheres vive no interior do Rio Grande do Norte, é mãe de 6 filhos e é empresária. Severina Sérgio Guedes, 65 anos, mais conhecida por Dona Branca na Praia da Pipa.

Natural de Nova Cruz (RN), vinda de uma família de três irmãos, Severina foi criada com a avó materna e a mãe no município de Canguaretama (RN) e encontrou muitas barreiras desde muito cedo. Aos três anos de idade, enfrentou a separação de seus pais e todos os conflitos que vêm com isso. Foi levada para morar com a sua avó materna; com ela, começou a trabalhar precocemente. Aos oito anos de idade iniciou as atividades laborais na feira: “Todos os dias, às 5h da manhã, nós estávamos nas feiras. Vendíamos cocada, tapioca, beiju, bolo,” conta. 

Dona Branca (Foto: Gideão Marques/Caderno de Pauta)



Com uma infância muito sofrida, Dona Branca, se viu obrigada a sempre ter de “se virar” para sobreviver. Ela conta que nunca teve lazer. Aprendeu a viver só com o que a terra lhe dava e, mesmo assim, ainda falta. 

Pelo fato de os pais não terem estudo e serem muitos pobres, eles nunca tiveram o interesse de colocar os filhos na escola. Por isso, Dona Branca nunca teve a oportunidade de estudar. Mesmo com toda dificuldade, uma madrinha comprou um caderno e uma “cartilha de abc” e a ensinou a ensinou algumas poucas coisas: “Na hora da lição eu chorava que era uma beleza. Eu achava que não ia aprender nunca,” diz emocionada. 

Como muitas pessoas do interior do estado, Severina, aos 11 anos de idade, foi até à capital em busca de melhorar de vida. Foi quando apareceu uma oportunidade para trabalhar na casa de uma família na capital: “Sofri muito. Tinha um rapaz que deu uma de louco e queria me estuprar. Ele era o filho mais velho da família,” revela Dona Branca. “Ele falou assim: ‘Você vai contar? Pode contar. Ela não vai acreditar em uma empregada como você. Conta para ver se ela não vai dizer na tua cara que é mentira’. Fiquei na minha e fui embora,” conclui.

Como acontece com muitas pessoas vulneráveis economicamente, Severina se viu como um objeto para aquelas pessoas: “Eu dormia na cozinha perto do bojão de gás. Eu dormia e acordava sentindo o cheiro de gás,” revela. 

Dona Branca, então, decidiu retornar à casa da avó, onde vivia com ela e a mãe. Foi quando, mais uma vez, surgiu a oportunidade e o desejo de estudar. “Aos 12 anos umas amigas me perguntaram se eu não queria estudar, mas eu não tinha nem certidão de nascimento,” diz a empresária. As amigas tentaram ajudar Severina e foram conversar com a diretora, que indicou que a sua mãe fizesse a certidão e fosse fazer a matrícula na escola. 

Com o desejo muito forte de estudar e entrar em uma sala de aula pela primeira vez aos 12 anos, Dona Branca pediu a sua mãe que fizesse o que a diretora orientou. Porém, foi contrariada e recebeu palavras de reprovação por parte da mãe: “Você vai se criar burra se depender de mim. Eu não tenho dinheiro para comprar uniforme de ninguém’. Eu chorei e fui para a reunião com os pais das minhas amigas,” conta. 

Diante dessa triste realidade, Dona Branca se viu obrigada a trabalhar em uma refinaria de sal. “Eu trabalhava enchendo os pacotes de sal. Quando tinha vários, a gente juntava trinta e fazia um fardo. E assim ia,” diz a empresária.

Em seguida, ela conta que havia chegado o tempo da puberdade e o desejo que querer namorar: “Aos 14 anos, fugi. Fui embora para a casa do meu namorado,” relata Severina. 

Sempre destemida, Severina foi ao cartório da cidade e falou que queria fazer sua própria certidão de nascimento para que ela pudesse se casar. Não conseguiu fazer, pois ainda tinha 14 anos. ”Eu mentia para a moça do cartório; disse que tinha 18 anos, mas na hora em que ela perguntou o ano em que eu nasci, falei a data errada e ela descobriu,” conta às risadas sobre o feito sem sucesso. Segura do que queria, ela pediu para que sua mãe o fizesse. 

Acreditando que a vida fosse melhorar, ela se casou com seu primeiro marido e pai de dois dos seus seis filhos. “Com dois meses [de relacionamento], eu casei; aí veio o sofrimento do casamento. Passava uma fome danada, porque a gente não tinha recurso nenhum. Meu marido [da época] era aratuzeiro [pessoa que pesca aratu – espécie de caranguejo]. Eu não trabalhava. Vivia isolada,” conta Severina. 

Após a separação do primeiro marido, ela se viu na necessidade de correr atrás dos seus objetivos e sustentar as duas filhas. “Ele era uma pessoa que gostava de brigar demais, mas não me batia, porque eu nunca abaixei a cabeça para nenhum homem que viveu comigo,” diz Dona Branca, com tom forte na voz. 

Ela que, depois de ter se separado do primeiro marido, foi trabalhar como empregada doméstica mais uma vez, disse aos seus familiares: “Não sei o que vou fazer da minha vida, mas na gandaia, ou em cabaré, eu tenho certeza de que ninguém vai me ver”.

Muito esforço e pouco recompensa, foi assim que Dona Branca sempre viveu, mas não se acostumou com o fracasso que vida insistia em lhe impor. “Eu trabalhava para mim, para minha mãe e para minhas duas filhas. O pouquinho que eu ganhava, eu dividia para nós quatro. Sempre partia para a luta. Nunca quis ser dependente de ninguém, e até hoje eu não sou dependente de ninguém,” exclama Severina. 

Foi quando conheceu o seu segundo marido, e com ele teve seus outros quatro filhos. Mais sofrimento estava por vir: como muitos nordestinos, ela foi para a região Sudeste do Brasil, em busca de uma vida melhor, com o seu marido. Dona Branca, fazendo jus à canção do saudoso Luiz Gonzaga, foi “com a coragem e a cara”. Viajou três vezes para o Rio de Janeiro e São Paulo. Lá, ela conta, conseguiu juntar mais dinheiro. Com a intenção de viver em Canguaretama com a família, ela sempre voltava para tentar se estabelecer. No entanto, sempre retornava ao Sudeste, pois o dinheiro acabava e ela não conseguia se manter por aqui. Seis filhos, 15 netos e 15 bisnetos, Dona Branca não se considera avó, mas, sim, uma segunda mãe: ”Eu tenho certeza que os pais deles vão falar: ‘Filho, você teve uma segunda mãe que lutou muito para eu estar aqui’. Eu acho que eles vão ter orgulho quando souberem da minha história,” conta Severina, que não segurou as lágrimas.

Ainda no Rio de Janeiro e com o desejo latente de estudar, se trancava no quarto sozinha para que ninguém pudesse ver e tentava fazer as atividades que a madrinha havia ensinado. “Eu pegava um caderno, uma caneta e fazia [as letras] bem devagarinho, uma por uma,” diz. Mesmo sendo destemida, Dona Branca não esconde que tinha vergonha de não saber ler e escrever: “Eu tinha vergonha. Sempre tive,” revela Severina.

Dona Branca diz que mudou muito em 40 anos. Sendo reflexo da criação difícil que teve, ela diz que era muito ignorante: “Eu era muito malcriada, ignorante. Mas acho que todo mundo é. Hoje eu sou feliz com quem eu sou e com as coisas que conquistei”. 

Mesmo com essa dificuldade de não saber ler e escrever, ela se tornou uma mulher de sucesso. O segredo é, segundo ela, mesmo diante dos problemas, levantar a cabeça e fazer o que se tem vontade. “Eu me sinto vitoriosa em tudo. Eu acho que meus filhos têm orgulho de mim,” mais uma vez, conta com lágrimas nos olhos. 

Dona Branca no seu restaurante na Praia da Pipa. (Foto: Gideão Marques/Caderno de Pauta)


A Churrascaria Dona Branca, localizada no centro da Praia de Pipa, é um dos restaurantes populares mais famosos da região; mas o início não foi fácil. Dona Branca conta que veio para Pipa com seu atual companheiro quando ainda não tinha quase nada por ali. Ela começou com uma quitanda de frutas nos anos 2000. Alugou um local e assim começou; fazia abastecimentos de frutas e verduras para as pousadas, hotéis, restaurantes: “A gente sempre procurou trabalhar com uma boa qualidade da nossa mercadoria para conquistar a clientela,” diz Dona Branca. Passaram-se nove anos e eles decidiram aumentar os negócios, foi quando decidiram abrir a Churrascaria Dona Branca. Fundado em 2009, Severina ainda continuou com a quitanda por um mais um ano. Todas as comidas do buffet da churrascaria foram aprendidas por Dona Branca. Segundo ela, aprendeu tudo trabalhando em “casa de madame”. 

O novo negócio se tornou tão famoso que os mochileiros sempre pedem ajuda de alimentação para ela. “Começou com um e depois falava para outros e assim foi. Eles me pediam ajuda. Aí, foram espalhando para os outros e hoje, às vezes, são mais 20 pessoas que vêm aqui me pedir comida. Eles dizem: ‘Não, gente, aqui ninguém passa fome, não. Pelo menos a comida Dona Branca dá’,” conta sorridente, a empresária de sucesso. 

“Eu lutei muito para ver meus filhos estudarem”. Severina sabe das dificuldades que teve durante toda a vida e espera que seus netos e bisnetos sigam os caminhos dos estudos. “Eu não tive estudo não, mas todo mundo vai ter, se Deus quiser,” exclama esperançosa a empresária.

Religiosa, ela revela um amor muito forte pelo catolicismo. Ela acredita que a sua história com a religião vem de berço. “Minha mãe me batizou com Frei Damião, em Nova Cruz, aos 3 meses de idade, mas eu frequentava a igreja com as minhas amigas. Eu vim sentir o que é a igreja agora. Eu me sinto bem quando estou na igreja,” conta. Doba Branca sempre trabalhou muito e nunca teve tempo de fazer coisas que lhe fizessem bem, e a igreja era uma dessas coisas. Porém, mesmo a igreja, hoje, trazendo tantas alegrias para a mulher que tanto sofreu, ela revela uma grande ferida que espera um dia sarar: “Eu não posso me comungar, porque eu não sou casada. Mas eu preciso. Eu sinto essa necessidade,” diz soluçando. Mesmo tendo tempo para frequentar às missas, ela sabe que tardou muito para despertar para a sua fé: “Eu converso muito com Deus: “Por que eu demorei tanto? Quero frequentar a Igreja mais e mais,” conta Dona Branca. Para isso, porém, ela diz que precisará dar uma diminuída no ritmo de trabalho. 

Aos 65 anos, ela se mostra e se sente muito forte e jovem: Não me sinto velha. Me sinto com muita saúde e vigor, apesar do trabalho, do cansaço...”, conta Dona Branca. Para comprovar sua boa saúde e memória, ela diz que não faz uma lista de compras para ir ao mercado. “Eu nunca fui de ficar com lápis e papel na mão. Isso fica para os empresários, que têm que fazer muita conta”. 

A mulher que no início dizia não ter nenhum sonho, se rende e revela seus maiores sonhos: “Izabele Pinto de Vasconcelos, 23, [sua filha mais nova] não é batizada. Ela só vai poder casar e batizar Armando [seu neto] quando ela se batizar. Para mim, esse é um sonho muito grande: batizar minha filha”. Também, mesmo tendo sofrido muito com a mãe, revela um carinho enorme por ela: “Eu ainda vou realizar o desejo de ter a minha mãe perto de mim. Por mais que a minha mãe fosse ignorante, eu quero ela perto de mim. Porque mãe a gente só tem uma na vida. Antes que ela morra, eu vou tê-la perto de mim, para dar o carinho que ela não me deu,” conclui Severina. 

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