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Natureza-morta

*Por Tiago Silva

Odilon Redon, “Orpheus” 

Dormia sempre na cama da mãe. A cama era da mãe e não da mãe e do pai – era da mãe. Ele morava com os pais. A cama era da mãe e ela dormia sempre com o filho. Este, sempre com o braço esquerdo debaixo do travesseiro dela, aquele travesseiro muito recortado e duro e quadrado, aproveitado de um colchão. O pai dormia ali perto daquele cômodo híbrido que também era sala, na rede. A cama, também híbrida, era também sofá – o garoto assistia à TV sempre deitado.

Era noite de quinta muito quente e abafada. O menino já estava na cama da mãe para dormir. Estava tudo apagado, menos a TV, de onde o pai dormia. Não se ouvia nada. A TV iluminava o cômodo com leve luz fantasmagórica. As imagens tremulavam indecisas na parede. Forçou os olhos para tentar enxergar as horas. 11h? Meia-noite? Forçou mais. Mais um pouco...mais um pouco...Nada. Estava escuro. Tentou mais uma vez. Arrastou-se um pouco para o pé da cama. A noite dentro dele gelou – meia-noite e quarenta! Nunca estivera acordado tão tarde. Sentiu um pouco de força e alegria. As imagens não tremiam mais na parede. Que acontecera? Passou o ouvido por toda casa, depois pela rua. Tudo morto. Sentiu um pouco de medo e depois coragem e força de novo. Que passava na TV? Que seu pai assistia? Ele assistia? Ou dormia? Se dormia não roncava. Seu pai roncava muito, muito, às vezes tinha medo. Mas e a TV?

Em um ato de extrema coragem, ele sentou-se na beira da cama. Não podia levantar-se de uma vez, pois a cama rangia e poderia acordar sua mãe. Levantar e circular pela casa à noite e aproveitar aquele instante de liberdade solitária? Levantar e ficar. Demorar-se no escuro, no escuro da noite, de olhos fechados. Ele sorriu. Tocou os pés no chão frio. Fazia tanto calor que queria deitar naquele chão tão fresco. Será, será? Afastou os pés para sentir as outras partes frias do chão. Fechou os olhos de prazer. Precisava levantar!

Jogou então seu peso para os pés e impulsionou o corpo para frente, em um lindo e arriscado movimento acrobático. A cama rangeu levemente. Ele ficou imóvel por alguns segundos, sem respirar. Abriu os olhos. Podia avançar? Precisava esperar. Passou os ouvidos pelo seu fino corpo. Seu coração batia alto, aos pulos. A casa e a rua continuavam mortas.

Que noite secreta. Já deve ser quase 2h. Que faria primeiro? Deitaria no chão sem roupas, ou ia na sala ver o que passava na TV? Percebeu que da soleira da porta escapava uma luz azulada e gelada. Será que ele dormia? Ouvia apenas um leve vibrar de coisa inorgânica. A luz ficava mais gelada. O pai dormia profundo como quem sonha. A TV estava fora do ar. Uma felicidade nova lhe cortou vertical o corpo – desligaria o aparelho. Sim, e seria só ele na noite! Poderia aproveitar aquela liberdade com mais segurança.

Sentou-se no sofá perto da rede do pai, isso não fazia parte do plano. O tecido grosso e áspero aquecia a pele, enquanto colocava os pés no chão frio. Era como se nada existisse, só ele.

Ali, na horizontal, fica sempre atento ao teto, ao que se move. A casa é de telha, então há perigo. Algo pode atravessar as frestas feitas pelos gatos e causar estrondos. Estava deitado certa vez na cama e sem perceber sujou-se com fezes de lagartixa. Lembrou-se de imediato quando seu pai segurou uma perto de seu rosto para ele não gritar mais feito mocinha. Não sei para quem foi mais estressante – se para o menino ou para a lagartixa. Lembra...lembra de seus olhos pequenos e escuros, sem brilho, e de suas unhas muito longas. Dois seres que queriam viver. Sentiu um calor depois um frio. Seu cérebro pulsava. Ela era mais escura do que as outras. Seu abdome parecia estufado – estava grávida? Estava. O mundo parou e eles dois se encontraram! O mundo parou com um shhhhhhhh! muito fino que engole tudo. O ar que saía de seus pulmões era tão pesado e áspero, ardia nas narinas. O ar que entrava era tão seco e poroso que arranhava seus ossos magros. O caos do ar então aos poucos repousou no chão. Um pesado silêncio caiu como um bloco e estalou. O menino só sentiu um cansaço de alma.

Desde então fica atento ao que dizem sobre elas e não esquece. Ouviu que um amigo mata as lagartixas, e de uma que ela morde como a pressão de dois dedos em pinça. A que mais o assustou – que uma menina as abria com a mãe para tirar seus órgãos!

No quintal encontrou certo dia um ninho de lagartixa. Sim. O medo e a curiosidade o invadiram. Acocorou-se ali perto. Olhou os ovos. Pela primeira vez sentiu-se corajoso diante daqueles ovinhos pequenos e frágeis. Tão belos. Poderia levá-los para casa. Sentiu-se corajoso. Olhou-os novamente. “Ele é muito doce”, “tem coração mole”, diziam quando ele chorava. Foi assim quando suas amigas da escola não quiseram mais sua amizade. Uma era alta, muito alta. A outra era gorda e tinha muitos cravos escurecidos no nariz. As duas eram melhores amigas. Nesse dia, elas o ignoraram durante todo recreio. Quando voltaram do intervalo para o segundo momento da aula, ele não aguentou. Desejou por um momento não se apegar a nada. A professora, com escandaloso perfume, cochichou com alguns alunos. Seu estômago ainda estava pesado do iogurte muito denso de ameixa que bebera no café da manhã. Mas não ia chorar desta vez. Olhou os ovos de novo e sentiu uma espécie de carinho. Era carinho. Algo por resolver ficou.

Sua mãe acordou no meio da noite com fome, com a cabeça fora do lugar e os pensamentos jogados. Foi fazer comida porque não tinha nada pronto. Sonolenta pelo sono e pela fome, pegou a maior panela do armário. Sem se importar com a ordem da vida, acendeu primeiro o fogo antes de colocar a água na panela. Seus olhos caiam pesados. A chama enorme de seu fogão enorme tomou quase todo o fundo da panela; a chama abraçava-a de leve. Algo vivia na panela e não percebeu. Uma barata correu para debaixo do cabo da panela sem ela ver. Encheu a panela de água e esperou. A barata estava em completo desespero – morrer com fogo ou com água? Apenas morrer –lançou-se inteira em voo rasante para a brancura estéril da pequena cozinha com cheiro de cloro.

É noite quente sem lua e ela fez macarrão sem molho, adora. Sentou para comer na beira da cama e puxou conversa com a irmã adolescente do menino.

– Sabe...o amor não se acaba.

– Ah, se acaba o de muitos! O amor de muitos esfria – disse a moça bocejando.

Não gostava muito da irmã do seu filho. Sim, não era sua filha, mas não era por isso. Talvez um pouco. Ela tinha piolhos e os catava sobre a mesa de madeira, a única que tinham. E sempre urinava na rede. Sempre o mesmo líquido quente sobre o chão frio. Tão grande...,pensava.

Moravam num poro da rua. Na vila, as casas eram muito coladas e estreitas. O calor era de um sol diabólico à espreita na sombra, esperando, esperando. Logo cedo, o pai disse que iria sair. “daqui pra pouco”, respondeu à mulher quando voltaria. Ela não entendeu e retrucou, em cólera amarela: “Acabe com essa história de ‘daqui pra pouco’, é ‘daqui a pouco’! Você vai voltar para o almoço!”. Ela estava preparando peixe porque era domingo e só comiam peixe no domingo, quando não era Semana Santa. A irmã foi para a cozinha onde estava a mulher e disse que teve pesadelo simples e horrível, mas ela não ligou. Estava preocupada. Algo verde saíra dela pela manhã.

– Não coma peixe – orientou a moça. – A amiga da minha mãe estava com esse problema e teve que fazer cirurgia.

– Vira tua boca pra lá!

Já passava da hora do almoço e a mãe foi para a casa da vizinha. Era uma mulher antiga, que já viu de tudo um pouco. O que as ligava na vida era que quase foram madrasta e enteada. Ela tinha namorado com seu pai pouco antes dele suicidar-se. Ainda expunha na sala uma foto dele emoldurada lindamente, com sua camiseta favorita, a azul e branca, de listras. Olhando a camiseta, quase conseguia sentir o cheiro do pai. Ela gostava quando sua quase enteada ia à sua casa para contar-lhe segredos, pois se achava digna de ouvi-los, mesmo que depois quando ela saísse fosse contá-los, todos, até os mais íntimos. A mãe sabia que sua vizinha não guardava segredos, mas ela precisava desabafar, não conseguia ficar com eles dentro dela. E contava.

– Não coma peixe.

– Não, Deus me livre.

– Ele já chegou?

– Saiu às 8h. Até agora. Estou morrendo de fome e ele não vem! Fiz peixe como ele gosta, parece aqueles pratos da praia! Só você vendo... – desabafou. E chorou.

Lembrou-se do seu primeiro namorado, do primeiro encontro. Alongando o caminho de volta para casa, deitou-se com paixão numa calçada ainda quente e contemplou o céu. Era um céu ainda baixo e miúdo que estava se fazendo, mas não importava. Aquilo era a verdade e era quase noite. Cantarolou baixinho sua música favorita em inglês, que não sabia o nome nem quem cantava. Mas não importava. Como disse, aquilo era a verdade e já era noite. Sentiu estrondos sucessivos de estrela morrendo – era Aquilo. Não entendia ainda e não sabia nomear, era apenas “Aquilo”, tinha certeza. Aquilo crescia, crescia. Crescia no côncavo do corpo. Estava pronta para saber. Rompeu casulos de horrenda beleza. Pálidas mariposas bateram asas e lhe subiram pelas pernas. Desejou o impossível, quis um instantâneo daquele momento. Metal riscando metal.

– Eu chorando é de desgosto, e desgosto mata. Eu morri há dez anos!

– A gente fala coisas às vezes que não quer falar, mas vêm.

– A cor é de limão.

Quando o avô do menino morreu, tudo ficou empoeirado e opaco. Densa névoa de lentidão caiu sobre a casa da sua avó, e entrou pelas frestas. O tempo se arrastava. Os relógios, quase parando. A ferrugem era apenas ferrugem, ninguém tinha levado a sério ainda. Mas, agora, as palavras eram cruas e sem sal, impalatáveis como o amargo da vida.

– É de amargar... – ele dizia.

Ele nunca chorava. Nunca. Nem mesmo quando a irmã morreu afogada numa enorme piscina após saciar-se com vermelhos morangos maduros. Ele era mais velho e ela, adolescente. Ela morrera após saciar um desejo. Morrera com o gosto do doce prazer da vida na boca. Por que tão cruel, Deus? Embriaguez de jovem cessada.

De dentro de seus tecidos moles, do seu corpo curvo e tenso, de suas células gordas, de sua língua grossa e amarela, dos dentes sem raiz brotou, porém, um soluço molhado. Era um choro que vinha. Cheiro de terra úmida aos poucos exalou.

As lágrimas pesadas como gotas de primeira chuva o cegaram. Estava afogado no escuro. Que aconteceria agora? Sabia que mesmo afogar-se no orvalho era perigoso. Mas a flâmula da vida parecia tão frágil.

O mar à noite é ainda mais imenso. É infinito. É a ideia mais concreta de infinito que consegue formular. A borda do nada, onde tudo se perde. Tem quase certeza que consegue iluminá-lo com a lanterna amarela que seu avô lhe deu antes de ir. Neste momento olha para o nada com alguém e alguém os olha. É o mar que os olha, suas imagens refletidas sobre um espelho sujo? Não, quem dera. É Marte ou Vênus que os olha lá de cima com seus núcleos quentes? Não, há uma enorme nuvem entre eles. Ah, então é o coqueiro. Não, não. Alguém os olha. Uma pessoa com olhos rápidos e brilhantes. Por que não olha o mar? Ela os olha. Disfarçadamente. Uma pessoa os olha disfarçadamente na praia à noite, num domingo. É domingo, ele sente. As ruas estão desbotadas, os ônibus, vazios. Domingo é tão estranho e uma pessoa os olha.

– Por que estás triste?

– Não estou triste – respondeu.

Ele estava, sim. Não conseguia esconder e o outro notou. Pela segunda vez – depois de passarem o dia juntos –, quando está indo embora de sua casa, ele o pergunta a mesma coisa. Saem sempre pela porta da cozinha, que dá para o quintal. Antes de sair, seus olhos correram vazios pelos vasos, pela areia úmida, pelo varal, pelas pedras. Tudo quieto e triste. Seus olhos subiram pelo céu pobre de estrelas e triste. Foi nessa hora que ele se denunciou – procurou algo no céu que faltava em seu coração.

– Por que estás triste?

– Não estou triste.

Deixa eu acender teu cigarro.

Ele estava triste, sim. A pergunta o estremeceu. Deixou cair o cigarro quando foi estourar a esfera de sabor e ele apagou.

Deixa eu acender de novo – disse encostando o dele no seu.

Foi então que viu seus olhos frescos e úmidos, muito castanhos e penetrantes. Seu hálito, doce e alcoólico. Seus olhos se encontraram. Seus olhares são de quando nos olhamos no espelho quando queremos pensar, sem excessos ou vaidades, apenas para ver. É. Olharam-se assim. Acho que abriram uma fissura no tempo. Foi tudo tão forte. Demorou tanto que deu sede. E ah! – tudo ocorreu sob o mais profundo silêncio. Só havia toque. Abriram uma fissura no tempo e isso os fechou num vácuo. O impossível – um som neutro e orgânico de coração, apenas.

– Por que estás chorando?

Durante o caminho de volta para casa, sentou-se numa calçada morna. O céu se revelou para ele de uma forma que jamais vira e jamais verá. Revelou-se inteiro, puro, como as múltiplas faces de um prisma. O mundo revelou-se. Viu tudo, tudo, violento e ameaçador. Com sua jovem liberdade, via tudo através de um tecido limpo e novo, como o novo tecido da vida. Carne crua ainda para salgar. Olhava com medo por entre as frestas de suas pálpebras nesgas de mundo que até então desconhecia. Discos pálidos como hóstias brotavam fartos do céu. Via um pedaço da sua própria galáxia acenar. Outras também se projetavam em espiral. As estrelas pareciam ter enorme necessidade de amor profundo e se juntavam em constelações – era amor com asas.

Com o véu da noite já posto, ela se distribuía inteira na Terra, como uma ordem – essa era a ordem secreta. E ela continuava a se quebrar – destampou-se algo, rompeu-se lacres. Um zumbido muito forte bzzzz! invadiu a atmosfera. Bzzzz!, meu Deus! Correu para sua casa energizado pelo medo. Correu para sua casa como quem foge da chuva. Algo cairia, sim, mas não sabia o quê. Pela porta de madeira, triste de dele!, entraram as abelhas. Era tarde demais. Gritos de ninguém em outra floresta. Correu para a cozinha à procura de algo para bater, bater em insetos? Mas ele, de carne doce, foi alvo fácil. Os insetos o picavam por todo corpo, ele gritava em agonia diabólica, não tinha o que fazer. Depois da luta perdida, deitou exausto na rede, sem vida. O que ficou depois da guerra foram alguns frutos bizarros com espinhos, daqueles que grudam na roupa ou no pelo, invenção da natureza para mamíferos. Bizarras sementes-bicho. Quase rosnavam.

Abriu os olhos. Chuviscos o molhavam molemente. A vida era uma natureza-morta sonâmbula. Parecia que ainda estava em estado de sonho. Acordou mais exausto ainda. Levantou e, na cozinha para onde correra, bacias cheias de água repousavam mudas.

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