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Novidades de uma criatura mítica

POR MARIA CLARA PIMENTEL

Arte por Marisa Dias

A novidade advinda das urnas completa pouco mais de 130 dias. Seu consequente fracasso não tem exatamente aquele caráter novo, visto que não era lá tão imprevisível. Mas as proporções que certas ruínas tomaram, em tão pouco tempo, aí sim, foram inéditas - uma surpresa para muitos. Foi justo aquele tipo de roteiro que te faz pensar que a pipoca tem um toque ainda mais amanteigado. Bom, seria cômico, se trágico não fosse.

A tal surpresa, no entanto, está nos custando caro. A novidade, tão mascarada de boas intenções, tão discípula de discursos quadristas, disposta a realizar impecavelmente a varredura de todas as sujeiras, acaba sendo um dos maiores equívocos da nação. De novo. Parece que o país, de um modo geral, se nega a aprender com seus erros. Alguns exemplos são o que ficou do período colonial, que ainda é responsável pela manutenção das raízes da noção de hierarquia racial; assim como o que ocorreu na ditadura militar, a qual, infelizmente, ainda tem entusiastas estúpidos fazendo homenagens ao período que trouxe tanto terror a tanta gente. Não é à toa que o babaca supremo está prestes a tirar toda a ciência que nos permite pensar e discutir sobre o passado, uma forma de fazer com que continuemos presos no atraso.

O paradoxo maior da nossa situação talvez esteja na diferença entre o que supostamente o nosso bobo da corte deveria estar fazendo e o que vossa majestade realmente faz. A novidade das novidades é o nosso povo ter escolhido um animal praticamente acéfalo para representar nosso país. Foi algo completamente sem precedentes. Claro, existe um ou outro, como o velho nortista de topete ralo, que não tem tanta sensatez, mas burro ele não é - muito pelo contrário, é um estrategista de primeira. Já o nosso metido a capitão do Exército, aquele milagre risonho, logo se transformaria em um pesadelo medonho que poucos conseguiriam prever. Estendido na rua, alguns desejavam levar para criar aquele animalzinho indefeso, aceitando qualquer balbúcia que saísse de sua boca. Enquanto isso, outros mais sensatos clamavam por uma visão mais racional. Quem sabe aquela criatura não se mostrasse, depois, uma aberração marinha que nos levasse todos ao fundo do poço? Cof cof.

De fato, o mundo é tão desigual, e completamente polarizado. Enquanto alguns tentam mudar isso e acabar com a fome total - não só de comida, mas de saúde, espiritualidade, intelectualização, enfim, ambientes que nos enchem a alma e os quais todos precisamos de vez em quando -, outros apontam que essas pessoas só estão montando um carnaval. É claro, em tais lugares, a balbúrdia prevalece. O que mais é possível fazer dentro de escolas e universidades? Nada, né? Somos todos jovens e ignorantes, completamente diferentes de quem quer nos governar. Não é como se os nossos representantes só nos fizessem ser motivo de chacota internacionalmente, fingindo ser convidados onde não são chamados ou postando conteúdos nas redes sociais e apagando-os só para acusarem a mídia de disseminadores de informações falsas. Um chefe de Estado jamais faria uma coisa dessas.

Na verdade, a maior novidade foi escutar o que deve ter sido um sonho, pois muito desconexo com a realidade e nada coerente com a situação em que vivemos: que ainda existe racismo no Brasil. Nossa, por favor, né? Ainda bem que nosso bobo supremo estava lá para sanar todas as eventuais dúvidas com relação a esse surto coletivo. Como se negros fossem discriminados todos os dias só por causa de sua cor de pele, como se fossem apontados como as melhores opções para trabalhos braçais e como se fossem hipersexualizados ainda hoje. Como se eles fossem tratados com inferioridade! Nós nem temos mais herança do período de colonização. Que época remota, somos todos evoluídos agora!

A novidade que vivemos hoje é uma gigante guerra entre poetas, que tentam desmistificar todas essas surpresas que recebemos diariamente, as quais só estão afundando nosso barco cada vez mais, e esfomeados irracionais, que não aprenderam a mastigar, apenas engolem tudo o que o mito lhes fala fazendo arminhas com as mãos. Um gesto tão tranquilizante, a propósito, cheio de boas intenções!

A verdade é que a nossa novidade, em forma de capitão bobo da corte, é como a criatura mística da sereia: metade busto de uma Medusa, metade rabo de uma baleia. Atrai os desavisados, petrifica-os com seu discurso massivo e acaba sendo uma barra pesada demais para aguentarmos.


*Artigo de opinião baseado em reinterpretação da música “A novidade”, de Gilberto Gil.

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