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Obscura claridade

POR TIAGO SILVA

“Horse, owl and chaise”, Gertrude Abercrombi

Sexta Santa. A primeira sem seu amor balançando na rede. Sem garrafas de cerveja vazias e seu cheiro rançoso pregado no ar, sem pregos e suas batidas, sem laranjas abertas oxidadas na geladeira ou limões abertos oxidados com mosquitos sobre o balcão, sem a boneca de pano bem-vestida assistindo a tudo. Sentada numa cadeira azul de plástico, ela olha a rua. As pessoas parecem esfriar aos poucos, como o asfalto ainda morno. O dia foi pesado e estranho. Alguma coisa tem que cair – ou a chuva ou a noite. Por favor. Por favor!, ela suspira forte, cansada.

Os dois observam o horizonte relampejando longe, em algum lugar da noite.

- Vovó, você não tem medo?

- A vida é um mistério, meu filho. A vida é um mistério.

- Mas você não tem medo do mistério?

- Já vivi todo o horror desta vida na minha idade. Só tenho medo dos castigos de Deus.

Estava mentindo? Por quê? Tinha medo. Não da morte em si, a obscura claridade – o mistério é a vida, não a morte; esta não precisa entender, só viver. Tinha medo de deixá-lo só.

Desequilibrou-se. Parece que caiu de um penhasco. O vermelho constante dentro de si foi apagando, apagando. Ela voltou para a escola. Estava determinada. Queria aprender a ler de uma vez por todas. Já sabe fazer o nome?, perguntou sua vizinha. Essas coisas demoram, pensa que é fácil? Seu neto já sabia. Como aprendeu em tão pouco tempo, Deus? E eu aqui, há quase uma vida. As crianças aprendem rápido, disse a vizinha. É, eu sei. Só pegava no seu caderno quando o neto estava dormindo, escondida. A capa, escolheu a mais bonita – era um rapaz muito jovem e com olhos alegres. Antes de abri-lo, olhava por horas aquele belo homem, sequestrada, tentando absorver sua alegria. O mundo é muito demais – pensou.

– O nome dele pode ser Crocodilo, porque ele comeu os peixes todos – disse o menino. – Quero morar numa casa bonita. Naquele castelo?

– Não é um castelo, é uma igreja.

– Eu só como besteira, né? Só macarrão. Só frango ou só carne. Gosto de pastel às vezes. Quando eu era bebê eu só tomava suco. Lá na praia o caranguejo se enterrou na areia. Será que é menina ou menino? Quero que seja menina.

Voltavam da praia. Os brincos pesados e dourados lhe emprestavam alguma graciosidade. Dizia que eram de ouro porque eram lindas gotas grossas. A verdadeira beleza deles se extraia quando ela andava sem ternura.

Uma paixão sem requinte corria pelo seu sangue febril. De repente, te perdi. O vento úmido da madrugada anunciava as notas iniciais de um dia. Os móveis da cozinha sob aquela luz amarela e seca. A dor da vida se enraizando.

Sentiu cheiro de chuva molhando o solo – era amor novo brotando da terra fértil. Ela criava galinhas. Pobrezinhas, estavam muito magras e ossudas. Ainda viviam? Como? Viviam vida frágil. Como a dela mesma. Aquilo tudo era encenação, já já acabaria. Que azar! Sortudas eram aquelas flores que nasciam no quintal, onde o cano da pia escoava. Lindas. Cor-de-rosa. Olhou o velho quadro de Nossa Senhora Aparecida na parede e desejou adiar a vida.

Ela e a realidade do mundo oxidavam. A pele de frango que jogara em cima de uma pedra escurecia. Envio-te um pedaço de mim, Deus. Carne de minha carne. Sangrando. Intolerável dor!

Ah, o silêncio do rosto. Ela era uma mulher que não costumava sorrir. Digo, sorrir muito. Isso pode? Acho que sorrir largo. Uma mulher que não costumava sorrir largo. Sorria um sorriso tímido, miúdo. Ou às vezes ficava séria mesmo. E gostava disso. O não-sorriso preservava seus mistérios. Mas gostava também de sorrisos rasgados. Que fazer então? Gostava do sorriso rasgado dos outros, não o seu. Adorava. Era uma iluminação que cegava. Ela não gostava de cegar pessoas que não conhecia. Sentia-se inquieta. Sorrir numa manhã prateada lhe doía.

Onde estaria aquela cabra grávida que vira pela manhã quando ia à praia, perto da parada de ônibus? Grávida. Quase fora atropelada. Ela vasculhava as sacolas de lixo na calçada. Seus pelos, úmidos e opacos. Queria ter levado aquele animal vivo para casa, para alimentá-lo. Por que não levou? Também não sabe. A cabra olhou-a com um olhar de que tudo um dia vai acabar, e sumiu pela avenida. Será que já pariu?

Ela sumiu junto. Jura que aquela cabra levou sua vida. Se soubesse, se soubesse! Ou se não soubesse, seria melhor? Viveria mais? Viveria melhor. Só queria viver melhor, não como falha da natureza.

Ainda é Sexta Santa. Não quer deixá-lo só. Juntou os desenhos de giz de cera dele que estavam no chão. Meu Deus, o que é isto, pensou ela. O que era? Ela sabia. Aquelas linhas amarelas grossas se cruzando no horizonte do papel, sobre uma mancha vermelha. Alguns pontos azuis. Era uma pessoa que via naquele verde? Talvez. Isso não importava. Gostou deste: uma menina com um cesto de frutas ao lado de um enorme peixe. Tão sem título. Sou um animal aquático no ar. Alguém a observa da janela. Aquele surrealismo primitivo era sua vida. Como pode? Ela não queria deixá-lo – nem se pudesse levar todos aqueles desenhos que eram sua vida.

Sexta santa de gesso quebrada. Não aguenta mais, a casa urge. Quer um jejum de si mesma. Não me quero mais, queria telefonar para alguém e dizer. Perdeu a cabeça, riscou o chão com o corpo. E chorou. Por que fora traída? Logo ela, tão devota! Cheiro morto de vela no ar. Comeu frango e chupou os ossos. Magras costelas amargam dentes tortos. A mordida imprecisa fere o peito e suas fibras. Será que...será que..., ela estava assim, repetindo as coisas.

Está em seu mais alto precipício, em êxtase. De novo uma luminosidade que cega. Assentou-se em sua face um sorriso de liberdade. Sua alma é pungente, de aço, alma viva, com cheiro de floresta, madeira verde cortada, jogada no rio. É sábado.

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