Recentes

“Nós somos do circo”


Família Barbalho mantém viva tradição secular e conta como é viver sobre o picadeiro


POR LUCIANO VAGNO

Há mais de 200 anos, um homem chamado Mateus Barbalho resolveu montar uma tenda para que as pessoas pudessem assistir suas performances de boi-de-reis sem se preocuparem com a chuva. A tenda transformou-se em circo que, daquele momento em diante, passou a ser tradição na família Barbalho, transmitida de geração para geração.

Quem relembra essa história é Gean Barbalho, 39 anos, bisneto de Mateus, e que hoje é dono e palhaço do Circo do Pastilinha, onde vive e trabalha com sua família. Ele se diz apaixonado por essa vida, o que fica explícito em seu olhar. Tal paixão é partilhada por cada um dos 12 membros da família Barbalho.

“Tínhamos esse sonho”

“Meu bisavô passou a tradição do circo para meu avô, que ensinou para meu pai, que passou para mim e eu estou passando para meus filhos, que já estão ensinando aos filhos deles” (Foto: Luciano Vagno/Caderno de Pauta)


Natural de Natal, Gean revela que já pensou em desistir da vida circense, mas reconhece possuir a vocação: “Acredito que Deus escolheu uma profissão para cada um de nós: um é carpinteiro, outro é pintor, outro é pedreiro, e nós somos do circo”. Ele conta que para ser um bom dono de circo é necessário tratar os companheiros com respeito e sinceridade, e mais ainda se forem sua família.

O apoio familiar motivou o natalense a seguir o sonho de ter o seu próprio picadeiro, há três anos. “Sempre que eu falava com meus filhos e minha esposa sobre ter o nosso circo, eles me incentivavam muito. As outras pessoas que trabalhavam comigo diziam ‘Você é doido? Vai quebrar a cabeça com seu próprio circo’, mas nós tínhamos esse sonho e acreditamos nele,” conta.

“Aqui é meu lar”

Gean não está sozinho na missão de cuidar do Circo do Pastilinha. Junto dele está sua esposa Adeílza de Lima Almeida, mais conhecida como Ana Paula, 38 anos. Tímida, ela revela que a vida de dona de circo é mais difícil do que a de dona de casa, mas confessa gostar: “Essa vida de andar de cidade em cidade é boa, a gente acaba conhecendo novos lugares e novas pessoas. Eu não acho nada ruim nisso. A única coisa que poderia melhorar é que deveríamos ser mais ajudados pelas outras pessoas e pelos políticos”.



Ana Paula é circense desde sempre e, junto com seu marido, administra os projetos da família (Foto: Luciano Vagno/Caderno de Pauta)

Ana Paula acrescenta que gostaria que houvesse mais união e companheirismo entre os colegas circenses. “Existe uma rivalidade,” diz. Ela ainda revela o que a motiva todos os dias: “O povo. É muito animador quando eles vêm e começam a gritar. Aqui é meu lar,” conclui.

“É minha arte”

Desde pequenos, os filhos do casal aprendem a fazer o público rir. É o caso de Michael Jackson de Almeida Barbalho, 21 anos, filho mais velho, que compõe a quinta geração de palhaços da família. Sobre a alegria em subir no picadeiro, ele revela: “Eu sinto muita emoção quando as pessoas estão nos aplaudindo e rindo. É muito bom ver o sorriso de uma criança. Até os próprios adultos parecem crianças quando riem. Eu sinto a sensação de dever cumprido,” declara. “Essa é minha vida, é minha arte e eu não quero deixá-la morrer,” conclui o jovem.


Michael Jackson prepara-se para mais uma noite de espetáculo (Foto: Luciano Vagno/Caderno de Pauta)

“Não tem tristeza”

Compondo o grupo de artistas da família está ainda a carismática Marizete Vicente de Lima, mãe de Ana Paula, com 58 anos de vida e há mais de 40 vivendo no circo. Casou-se e criou seus seis filhos em torno do picadeiro. Quando ficou viúva, voltou para casa de seus pais, onde passou apenas um ano, sem conseguir ficar por muito tempo longe. “Aqui é bom, é divertido. Todo dia você está alegre; não tem tristeza, e se tiver, quando chegar em cima do palco, se acaba. Ando com o circo desde os meus 15 anos e acho que só vou deixar de andar com ele quando morrer,” diz.


Há mais de quatro décadas, dona Marizete viaja com o circo e diz não pensar em parar (Foto: Luciano Vagno/Caderno de Pauta)
“O espetáculo não pode parar”

Nem tudo são risadas na vida de quem mora no circo: o preconceito de algumas pessoas e o descaso por parte de prefeituras machucam aqueles que vivem do riso. Gean relembra um momento triste em que teve de tomar uma decisão: “Em fevereiro do ano passado, recebi uma ligação na sexta-feira pela manhã. Eram os meus pais, com a notícia de que meu irmão caçula havia falecido”. Na noite seguinte, havia muitas pessoas em frente ao circo esperando pelo espetáculo, mas o palhaço estava em dúvida se abriria os portões ou se permaneceriam fechados, para que pudesse lamentar a morte do irmão. “Foi aí que veio um menino até mim e disse ‘Homem do circo, vai abrir a porta senão vai ficar muito tarde’”. Ele revela que aquilo partiu seu coração, mas que também lhe deu forças: “Eu abri a portaria, o pessoal entrou e nós trabalhamos”.

Apesar das dificuldades, os Barbalhos mostram que o show tem de continuar. Em uma sessão especial, o Circo do Pastilinha recebeu crianças de escola pública. O espetáculo foi marcado para as 9h, no entanto, começou a chover fortemente momentos antes do horário previsto. Tinha tudo para dar errado: a água começou a pingar através da lona, o chão ficou escorregadio, o palco ficou encharcado. Contudo, mesmo debaixo da chuva, as crianças foram ao circo, e lá estavam os artistas à espera delas. Rostos pintados, narizes de borracha, roupas com lantejoulas, fantasias. Estavam prontos para fazer aquilo que amam: despertar sorrisos.


Perguntado sobre o porquê de não ter deixado o espetáculo para outro momento, Gean confessa: “Eu achava que as crianças não iriam vir, mas quando vi elas chegando debaixo da chuva mesmo, pensei ‘Se eles querem, a gente quer mais ainda, porque o sorriso de uma criança não tem explicação nem preço’. Com chuva ou sem chuva o espetáculo não pode parar”.

Nenhum comentário