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Os múltiplos Drags de ser Queen

Por Henrique Mendes  e Tiago Silveira



Ciara LeGlam, DJ Drag Queen natalense. Foto por Jonathan Alves

Os mais diversos olhares já foram lançados sobre a cultura drag queen, desde o acadêmico, político, até o mercadológico explorado pela mídia. A cena drag natalense foi retratada em 2008 pelo documentário Dragstars, do então formando do curso de Comunicação Social da UFRN, hoje professor da UERN, Joseylson Fagner, a partir dos depoimentos de performers emblemáticos da noite potiguar, cujos relatos de experiência não só traçam um perfil das identidades corpóreas expressas no fazer drag de cada um, como reafirmam a condição artística de suas performatividades. O documentário serviu de base para a tese de mestrado de Fagner em Antropologia Social, Femininos de montar- uma etnografia sobre experiências de gênero entre drag queens, defendida em 2012. Mais recentemente, em 2016, uma matéria trazendo entrevistas com nomes como Eva D’Whore, Nagasha Macheta, Potyguara Bardo e outras, sobre os novos destaques do cenário de Natal, foi publicada no Novo Jornal, e em março deste ano o veículo retomou o tema com uma pauta sobre a ascensão da carreira da cantora drag Kaya Conky.

O fascínio exercido pelas queens sobre jornalistas e estudiosos certamente tem a ver com os visuais exuberantes, a beleza conceitual dos looks ligados à alta costura que compõem suas performances seja no palco, seja no vídeo, dublando, cantando, atuando ou apenas sendo drag (female impersonator) nos espaços de que dispõem para expressar essas performances. Mas tem a ver, também, com a curiosidade sobre essa expressão, que é quase sempre pública, com um componente de exibicionismo, mas que é, também, extremamente pessoal quando representa uma continuidade ou oposição de seus próprios eus. 

No âmbito da ficção, diversas produções do cinema e da televisão se notabilizaram por apresentar leituras desse universo; o reality show do canal americano VH1, RuPaul’s Drag Race, idealizado e apresentado pela mundialmente famosa RuPaul, que atualmente está em sua nona temporada, se converteu numa das principais referências da cultura pop na atualidade.

Algumas acepções da palavra drag apontam para o uso do termo no contexto teatral em 1870, em escritos de Shakespeare, informação que carece de autenticidade, mas que já foi defendida por artistas drag como Rita von Hunty, em episódio do reality show da internet Academia de Drags e pela própria RuPaul; uma concepção etimológica popular faz uso da explicação de que o termo seria uma redução para a expressão em inglês “dress as a girl(“vestido como uma garota”, em tradução livre). Assim, o termo é convencionalmente usado para nomear a pessoa que performa o gênero feminino, drag queen, e para a pessoa que performa o gênero masculino, drag king, sem relação direta nem com gênero nem com sexualidade por se tratar de uma representação artística. Nesse mesmo universo performático não-binário estão categorias como cross-dressing,
transformista e kenga.

Jarita e Shakira no 
Baile das Kengas 2017 
Foto por Jonathan Alves
Anualmente, desde 1983, o Baile das Kengas de Natal faz parte da programação do Carnaval da cidade. Nele acontece um concurso onde elege-se a melhor representante entre as que desfilam no palco, levando em conta aspectos como a caricatura humorística do visual e a irreverência das respostas dadas às perguntas apresentadoras do baile. Em 2017, o baile foi apresentado pelas icônicas Divina Shakira e Jarita Night and Day e premiou a kenga Sucuri do Pantanal. Apesar de, entre o público, ainda vermos representações equivocadas do feminino numa apropriação pouco cuidada esteticamente que homens heterossexuais fazem principalmente, diga-se de passagem, no carnaval, o baile se constitui como um importante reduto de resistência da cultura LGBTQ em Natal.

Figura da noite e das festas por essência, é no universo tumultuado de comemorações e musicalidade frenética da boate Casanova Ecobar, zona sul de Natal, que Ciara LeGlam se encontrava em mais um dia de sábado. O produtor da casa informa que ela se atrasara na calourada MedinVegas em que havia se apresentado algumas horas antes. Por volta das 23h, vestida num esfuziante collant pink, LeGlam chega ao Casanova. A conversa com nossa equipe se deu enquanto ela se prepara para o segundo dos três shows como dj que fará naquela noite.

Ciara LeGlam
 DJ Drag Queen natalense
 Foto por Jonathan Alves
Com a agenda cada vez mais movimentada, chegando a uma média de vinte apresentações por mês, Ciara, 29, largou o emprego formal em que trabalhava há sete anos quando viu que aquilo que começou como “uma brincadeira, só para espairecer”, estava sendo levado a sério por produtores de casas noturnas e pelo público, inclusive hétero, que passou a contratá-la para eventos dos mais variados tipos, como o aniversário que ela fez na mesma noite após a festa Bangerz promovida pelo Casanova. “É uma coisa que eu me divirto muito fazendo, porque quer queira, quer não, eu deixo de ser quem eu sou para ser outra pessoa, outra personalidade totalmente diferente. Eu diria que Ciara é uma terapia que me dá dinheiro ao invés de eu gastar dinheiro”, diz a artista entre um cumprimento e um sorriso que dá aos muitos conhecidos que ela parece cultivar na casa. “Eu sempre falo que cachê é muito bom porque paga as contas, mas carinho, receptividade e reconhecimento do público para mim são primordiais”.

Como dj, Ciara trabalha sua playlist especialmente voltada para o pop dos anos 90 e 2000 - por considerar o estilo destas décadas mais popular e genuíno do que o produzido hoje em dia -  mas que passa, a depender do público, por outros ritmos como o funk, muito apreciado nas baladas potiguares. Atualmente Ciara mantém em paralelo um canal no YouTube onde ela explora aspectos da cultura drag de Natal e mostra seu processo de maquiagem, vestuário e até eventos que faz numa relação bem próxima que ela estabelece com seu público, os glamigos, nas redes sociais.

Link para o canal de Ciara LeGlam aqui  



Há mais de quatro anos no ramo, Ciara entende que o drag perpassa pela questão política com relação à representatividade dentro e fora da comunidade LGBTQ. “Somos por si só um confronto e ressignificação de antigos conceitos”, responde, taxativa quanto a este aspecto. Ela encara a sua performance de maneira muito natural e assinala que arte não pressupõe nenhum dogma ou proibição preestabelecida. “Drag é drag, independente se homem, mulher, voz fina, voz grossa, feminina ou não, barbuda ou não, estranha ou não. Drag é arte, então tudo que respira arte tá valendo”.



 Cookie Kill Foto por Jonathan Alves
  “Tem quem veja apenas como uma fantasia para uma festa e com certeza tem quem enxergue além, como uma expressão artística única de um ser humano”, responde Cookie Kill sobre o olhar das pessoas com relação à performance drag. Ela, que começou a se montar há apenas dois meses, estava na mesma festa que Ciara LeGlam e é o exemplo de que o drag está além da expressão feita no palco: é, como ela mesma diz, uma arte em que não cabem definições. Inspirada por artistas icônicas como Elza Soares, Cookie chama a tenção pelo visual andrógino, sem peruca, que exala uma feminidade exótica e hipnotizante ao jogar com a dualidade da performance de gênero no look daquela noite. 

Kill revela o desejo de que sua performance artística caminhe para se tornar um meio de trabalho, mas ressalta algumas dificuldades com as quais tem que lidar. “Por mais que já estejamos caminhando para um espaço que nos receba, ainda há bastante o pensamento de que é simples chegar em um evento daquela forma. Nós precisamos estudar, praticar e financiar tudo que apresentamos no início até estarmos em posição de destaque o bastante para que exista um maior suporte da parte dos contratantes e produtores”.

“Dependendo do ponto de vista, as pessoas podem nos ver como artistas, uma personagem, ou uma aberração”, aponta Alna, 19, estudante do IFRN Cidade Alta, que divide os palcos há cinco meses com a amiga e também drag queen, Fiorella.

Alna e Fiorella. Foto por DJ Panda 

Cantora e compositora, a coautora de Chubenrá diz ainda que é difícil, para quem está começando, construir seu espaço na noite, pois “Ouvimos muitas críticas e não temos apoio das mais antigas”, além do preconceito da família e amigos.


Questionada sobre o que é ser drag, ela explica que, além do lado artístico, também é um ato político. “É uma quebra de barreiras e tabus; uma luta por espaço e visibilidade. Além de um ato de autoaceitação. Fiorella e eu pensamos muito antes de nos lançarmos como drags”. Entre suas musas, então as cantoras Beyonce, Rihanna, Karol Conka, e drags como Pabllo Vittar, Gloria Groove e RuPaul. Ela também se inspira na modelo canadense que, assim como ela, tem vitiligo – WinnieHarlow.


Abertas as caixinhas de classificação como um novo sopro do processo de discussão da desbinarização do qual a cultura drag faz parte, temos as mulheres drags surgindo com cada vez mais força na cena performática e ampliando ainda mais o debate em torno da construção social de gênero. Lola von Dolf, alterego da Jerllyanne Ferreira há pouco mais de cinco meses, é uma figura representativa desse movimento em Natal e cita a cearense Sophie van der Beek como principal influenciadora de sua decisão por começar a montar. “Eu já conhecia alguns homens que faziam drag, tinha vontade de fazer, mas nunca achei que faria sentido, que as pessoas iam receber bem. Mesmo já conhecendo algumas mulheres drags que tinham na cena, elas tinham um estilo totalmente diferente daquilo que eu faria”, diz a integrante do Núcleo Tirésias de estudos da homocultura da UFRN. 

A condição feminina, para Lola, torna o drag ainda mais político, na medida em que atua não só na desconstrução da ideia de gênero, como também na quebra de estereótipos criados a partir da percepção que uns esperam ter dos outros. “Você chega montada e as pessoas se chocam, ainda mais como mulher, que é mais forte por conta de toda a questão social do ser mulher. É você chegar e dizer que essa ideia de gênero é errada, que isso é apenas uma ideia, uma construção social”.  Na ideia principal de expressão e na comunhão de diferentes personas numa só é que Lola encontra a definição do seu drag, plural como suas referências que vão desde Barbra Streisand, passando por uma gama de musicais da Broadway, até a Sharpay de High School Musical.

Foto acervo pessoal Lola von Dolf


 “A minha drag é tudo que eu sempre quis fazer, desde criança”, declara Lola numa confluência de pensamento que talvez sintetize tudo que se falou até aqui: o drag é uma forma de expressão que experiencia as questões de gênero, mas vai além disso: resiste nos recônditos da noite a despeito da cruel homofobia e ignorância vivenciadas nos nossos dias e, como um grito que explode em cílios postiços, delineador  e enchimento, torna-se a cereja do bolo nos espaços da representatividade

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