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O poeta da passarela

Ele foi garçom e trabalhou em almoxarifado
Hoje, vende poesia

Seu Manoel, vendedor de cordéis
(Foto: Camila Emily/Caderno de Pauta)

*Por Camila Emily 

Lá pelas cinco da tarde, quem atravessa a passarela logo vê, sempre muito bem trajado com roupa social que é uma de suas características; o poeta que carrega um pente no bolso da camisa e cordéis em suas mãos. Quando perguntado como se chama, ele responde sem pensar muito: “Manoel dos Santos e Silva, poeta nascido no marco colonial. Touros”. Trata-se de Seu Manoel, 68, vendedor de cordéis na passarela em frente ao Shopping Via Direta, zona sul de Natal. É bastante conhecido e fica sempre no mesmo local, na dobradiça da passarela que é onde lhe cabe e tem espaço. E nos dias que ele não aparece, o canto que o pertence parece vazio: “Ela é como minha mãe, apesar de ser um ser inanimado, eu gosto dela,” afirma sobre a passarela. O senhor de camisa social vermelha parece nem se importar com o calor potiguar. Todas as vezes que pedia para fotografar o momento ele rapidamente retirava o pente do bolso da camisa e passava em seu cabelo grisalho.

Não conseguimos conversar sem sermos interrompidos, no mínimo, umas cinco vezes ao longo da entrevista. Foi muito cumprimentado por todos que ali passavam. “Opa, Seu Manoel” e “Como vai, Seu Manoel” eram os mais dito pelos que passavam pela suspensão de concreto. A todo momento perguntavam quanto custa um cordel e ele respondia “um é dois, e três é cinco”, com um largo sorriso no rosto de quem já estava tirando uma quantia razoável naquela noite. Vende cordéis desde 1985 e o primeiro foi sobre o Plano Cruzado, um plano econômico do governo de José Sarney, porém perdeu a matriz do que havia escrito na época. Criado ao som da viola, sua infância foi ouvir violeiros desde os sete anos de idade. Aos treze já começava a fazer seus primeiros versos desmantelados e sem métrica. Ele diz ser um autodidata porque aprendeu tudo sozinho – “Nunca fui à escola de poesia,” conta, deixando claro que é de natureza ser poeta.

Recorda que na época em que começou a escrever, os vendedores de cordéis se davam muito bem por não haver internet e nem televisão. A primeira vez que assistiu televisão foi em 1970, em Macau. “O cordel não predominava, ele dominava”, diz com um olhar saudoso. Tinha pais analfabetos que trabalhavam no campo e teve que começar a trabalhar desde muito jovem. Ele lembra que quando chegou a estação ferroviária de João Câmara leu o nome do jeito errado: “Eu li a palavra João Câmará, mas não tinha ninguém com quem eu pudesse corrigir. Minha mãe era analfabeta e meu pai também. Após três anos, voltei, e agora já sabia ler muito bem”. A cada pergunta ele parecia voltar no tempo e contava com exatidão como aconteceu. Nunca leu Castro Alves e nunca gostou de ler livro de ninguém, pois, para ele, um verdadeiro poeta precisa ser original, criar e inventar sozinho. Por isso o apelidaram de autodidata.

Quando saiu da sua cidade natal, se sentiu como um pássaro que chega numa floresta sem ninguém. Mais difícil do que viver lá, foi viver aqui. Pois não tinha amigos e tampouco parentes. Chegou no Alecrim quase sem roupas e sem nenhum tostão. Vindo do interior, ficou encantado com as coisas que encontrou na capital: “Cheguei na porta de uma cidade e me perguntei ‘O que é isso aqui?’ Eu, muito vivo com medo de perguntar a alguém. Para mim era uma Nova York, para quem veio de uma cidadezinha lá fora”. Casou-se duas vezes e tem seis filhos; atualmente ele mora sozinho. Vive com a renda que recebe do governo e um trocado que ganha na venda de cordéis. Já chegou a tirar trezentos reais por mês, mas ultimamente tira no máximo cento e cinquenta. Isso quando não sai no fim da noite sem lucrar nada. Apesar de muito desiludido com a realidade ele acredita que um dia suas obras possam voltar a ter valor. Quanto vale um verso. Quanto será que vale os versos de um poeta?

​Cartaz de anúncio dos seus cordéis (Foto: Camila Emily/Caderno de Pauta)

Uma das coisas que inspirou suas obras foi o seco do sertão e a vida do sertanejo. Seus versos são criados a partir de sua sensibilidade poética, muito mais que palavras. Um poeta cujo talento, para muitos, não tem valor. E a sua maior fonte de criação é o sentimento humano, do que vê e do que vive, que para os não-poetas é imperceptível. Uma certa vez, quando declamava seus versos, o questionaram que a lua não chora e ele afirmou: “É a imaginação do poeta” .

Eu ia para Juazeiro do Padre Cícero Romão

Ia com a mãe santíssima no coração

Eu via a lua chorando quando passei no sertão
[...]”
Uma de suas obras (Foto: Camila Emily/Caderno de Pauta)

Um senhor que só estudou o primário deixa até mesmo doutores de universidades boquiaberto. Dentre uma declamação e outra, ele se perde nas poesias que cria sem estudo algum. O talento vem de um esconderijo secreto onde homem algum consegue ver, nem com microscópio. E, depois de declamar, conta entusiasmado: “Era um dotô. Ele bateu palmas e chamou o amigo para ouvir,” em seguida, o homem para quem declamava completou sorrindo “Você vai dizer de novo, porra”. Seu Manoel tremia todas as vezes que pronunciava uma palavra iniciada em R; tremia tanto que dava para sentir a vibração que o som fazia em sua boca. E gesticulava, tocando em mim enquanto declamava uma de suas criações sobre a medicina. Apesar de já estar bastante habituado às evoluções com o passar do tempo, ele leu muito cordel na lamparina, sob a luz do querosene. E era feliz. Ele tem alma nobre e conduz cada palavra como um maestro com sua orquestra. É que poeta a gente não só conhece; poeta a gente sente. O sertão não só transpira, ele também inspira, e no marco colonial jamais se viu igual depois dele. Poeta, de onde é que vem seu verso?

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