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Alegria de uma solidão

POR TIAGO SILVA  

“Light sea mood”, Emil Nolde (Foto: Divulgação)

O mar me olha por inteiro. Eu não o vejo, mas ele me vê. Ainda não sei ver o mar, eu tento, aprendo todo dia. Por isso eu apenas o olho. Mas olho bem, querendo vê-lo. Sim, pois tento escrever. Escrever é olhar a tentativa. É ser a caça. Por isso escrevo – pela tentativa. É a tentativa que vale. O mar me vê, porém. Ele me sabe, me toma, me tem, me tenta.

Bebo um pouco do mar com sede de senti-lo (ver) e fico com a garganta seca. Tarde demais, ele me bebeu primeiro. Estou nele, mas não sou o mar. Ele é sozinho. Sou um pouco dele: tenho uma serenidade secreta, meio mar.

“Meio mar” escrevi de azul. Tudo até “mar” foi escrito de azul, na verdade. Da cor do mar. Mas este mar não é azul. Não – é verde. Verde-mar. Verde-mar. De novo: verde-mar. Escrevo “verde-mar” com certa alegria, por isso repeti. Estou tremendo agora não porque algo me falta, mas porque escrevi esta parte no ônibus, e se treme quando se está no ônibus, com os solavancos. Se não acreditas, posso te mostrar o manuscrito.

Mas eu não estava no mar? Ainda estou. Acho que não conseguirei sair dele tão cedo, céus. Alguém me salve, ou morrerei afogado, palavras entrando pelo nariz. Até agora escrevi sem pausas, apenas consultando minhas anotações, mas sem pausas – lápis queimando como pedras do sol. Tudo caindo como onda pesada; e não se pode conter as águas do mar, ah não se pode.

Não percebeu? Disse que escrevi com lápis há pouco. Menti quando disse escrevi de azul até “mar”, no segundo parágrafo. Menti para me salvar. Queria acabar tudo em dois parágrafos com vários pontos mudos, assim:.........................................., e entre eles te deixar pedaços de respostas, e te dar autonomia. Encontrar a coisa! Mas isso seria ser covarde contigo. E comigo também. Não me é possível. Na verdade é! Só alguns pontos e me livraria disto.

Mas o mar, mas o mar me olha e tento ouvi-lo. Ele quer me dizer algo, e esse “algo” é o que se chama de texto nesta Terra. Mas para isso é preciso que alguém escreva. Escrever com caneta ou lápis é tão impreciso. Quero escrever com as ondas do mar, com os pés na areia, com os cabelos molhados. Sim, eu quero. Então chegaria à perfeição da escrita – escrever com o movimento das águas. Escrever dentro d’água! Estou tremendo de novo, mas desta vez é por dentro? Sem atropelos – é na alma. Se chover, a chuva vai molhar tudo. O mar é onde escrevo. Escrevo dentro de mim. Tenho uma infinita folha em branco, Deus! Que por aqui? Toda a matéria do mar é meu material de escrita. E ele está assim: mudo. Uma frustração que arde. Até agora estou mergulhado no mar para escrever e nada escrevi. É que procuro a palavra sincera. Ah – acho que tenho outra coisa do mar: a paciência.

O mar já foi escrito várias vezes. Eu mesmo já escrevi sobre o mar. Então por que escrevo de novo? Sempre tem algo a mais para escrever. Já se escreveu muito sobre o mar, mas não tudo, tenho certeza.

Escrevendo sobre o mar o mantemos vivo. Ele respira agora, eu sinto, hálito morno como algo que vive. Também posso escrever gritando, para todo Atlântico. Adiantaria de quê? Prefiro a caligrafia. Este texto está sendo escrito com uma trêmula mancha branca luminosa que aos poucos empalidece. É que a lua afogou-se no mar.

Sinto a sonolência das manhãs. O mar cada vez mais perto, e não sei nadar. Não sei. Parece até que não temo a morte – eu me lanço na fúria das águas. Elas têm um chiado áspero de vidro. Melhor: de espelho estilhaçado, minha imagem refletida mil vezes. Assim seria mais difícil a morte me capturar.

Mas, ainda assim, ela se ocultaria firme no meu corpo e expulsaria minha alma aguada, molusco sem concha. Então ela olharia triste o corpo que não mais é seu. A alma é do mundo; o corpo é do mar.

Mar oculto, descubro: oráculo de infinitas vidas. O esquecimento tirando tudo de mim. O que está sendo agora é o mítico real, riso alto de criança, gaivotas com cicatrizes, caçando alimento numa praia de seixos. Eu, arfante, entrego a mim mesmo antúlios vivos. Orvalho grosso secando.

O céu é um penhasco azul que desaba. O horizonte se dissolve na penumbra e se perde no mar. Não sei há quanto tempo estou aqui. Oh, aquela centelha luminosa correndo no sangue. O mar me dá toda sua energia trêmula na borda do infinito. Vem, segura minha mão! Minhas raízes estão cada vez mais profundas. Estamos nos encarando no escuro por horas. Fala alguma coisa!

As constelações me contam segredos de centauros feridos de guerra. Preciso recolher os murmúrios que deixei até aqui para que algo seja dito. Eles são tão delicados. Lâminas finíssimas de prata. Que difícil seria! Aquele halo lunar me distrai. Por favor, não acendam a luz.

Acho que agora estou de alma pura, lavada. Sente-se o sal quando vem o esvaziamento. Ele me leu! Tudo isso foi um banho de mar? Não – foi uma ideia boiando na água, sobre a alegria de uma solidão.

Eu vi.

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