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O mundo é um moinho

Girar com ele é condição para enfrentá-lo

POR MARIA CLARA PIMENTEL

Meu pai sempre teve um quê de melodramático. Quando lhe contei da decisão de começar a tomar meu próprio rumo, seja ele qual fosse, ele dizia que ainda era cedo, que minha vida cairia um pouco a cada esquina, que em pouco tempo eu já não mais seria quem era. É verdade, papai, disse-lhe, quase não tenho experiência e eu pouco conheço da vida, mas não será escondida do mundo que aprenderei a enfrentá-lo.

Ilustração com base na história de Dom Quixote de La Mancha (Foto: Divulgação)

Você sempre me contou as histórias de Dom Quixote e Sancho Pança, as quais, incrivelmente, sempre se referiu de forma pouco convencional. Papai, nunca foram as aventuras dos dois espanhóis que apreciava me relatar, se não o fato de, às buscas de lutar suas batalhas, confesso - quase sempre infundadas e desnecessárias - acabavam com seus sonhos triturados pelos moinhos da vida. Mas não será essa a graça de estar vivo?

Eu sei, o risco que tomo de acabar com minhas ilusões a pó, como ambos, é grande. Também percebo que as chances de ter meu coração quebrado e de herdar apenas o cinismo de cada amor não são pequenas. Mas, ao meu ver, vale a pena tentar. É um sonho que realizo enquanto outros, provavelmente, serão jogados à beira do abismo. Mas, pelo que já ouvi falar da vida nesses poucos anos de experiência, é exatamente assim que ela funciona! E não posso esperar para vê-la em ação, acontecendo diante de meus olhos, fazendo pulsar meus instintos e subir minha adrenalina.

Para o abismo que supostamente cavo com meus pés para quando a vida me derrubar, te digo que já tenho outra função. Tem sido uma ótima motivação prepará-lo enquanto penso em todos os medos que desenvolvi para com as pessoas, as situações e os desconfortos que muitas vezes nem tive o desprazer de vivenciar. Claro, sempre me esquivei de toda e qualquer mínima possibilidade que pudesse me levar até essas incomodidades. Sim, papai, serão todas essas coisas que sempre evitei, todos os meus medos e aflições sem fundamento, que irão parar no fundo do poço.

Entendo que a vida pode ser constituída de infindáveis moinhos de vento, prestes a me estraçalhar a cada esquina. Mas eu não só quero, como preciso, viver isso. Toda a minha infância e adolescência fui cerceada de vontades bestas de uma garota que só almeja brincar de moinhos, dragões e o que seja. Mas não me entenda mal, pai, todas essas privações não foram resultado de pedidos seus unicamente, mas de minhas próprias fobias também.

Entenda que não tenho a criatividade de Dom Quixote, nunca tive. Não vou sair por aí lutando contra monstros e saindo de aldeia em aldeia arranjando confusões sem necessidade. Mas você bem que podia, uma vez que fosse, bancar o Sancho Pança e me acompanhar em pequenas aventuras. Eu só quero aprender a viver sem medo, sem me privar da tentativa de erro e também de acerto. Eu agradeço por todo o cuidado, de verdade, sei que sempre teve as melhores intenções. Mas não sou mais sua princesa que deve ser mantida em segurança em uma torre gigantesca, protegida por dragões e fadas. Não vê que as tais criaturas são puro fruto da sua imaginação?

Estou resolvida. Deixei de aproveitar muitas coisas na vida, e sei que o senhor também. Ao te contar tudo isso, enfrento meu primeiro moinho de vento, e surpreendentemente ele não é tão assustador quanto parece. Papai, agradeço pelo carinho por todos esses anos, mas agora me toca o papel de tentar ensinar a você a possibilidade de verdadeiramente viver. O que me diz?

*Conto baseado em reinterpretação da música “O mundo é um moinho”, de Cartola.

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