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“Quando minha estrutura não aguenta, Iemanjá vem e me sustenta”

Gabriella Batista, umbandista há mais de uma década, fala sobre sua conversão à religião, o amor aos Orixás e a luta contra o preconceito


POR LUCIANO VAGNO

Surgida no Brasil no início do século passado, a Umbanda completa 111 anos em 2019.  Segundo dados do Censo de 2010, há no Brasil mais de 400 mil adeptos. Gabriella Batista, filha de Iemanjá e Oxalá, tem 20 anos e é um deles. Natural de Parnamirim, a estudante de Enfermagem conta que, embora tenha entrado para a religião por meio da enfermidade, hoje se vê orgulhosa de sua cultura e conta um pouco de sua história.

Gabriella com seu típico traje branco e sua Guia (colar) com as cores de seus Orixás: azul, em referência à Iemanjá, branco, referenciando Oxalá, e algumas pedras verdes que representam seu fundamento com os Erês (Foto: Luciano Vagno/Caderno de Pauta)

Durante a infância, Gabriella era muito doente e passou por diversas internações com um quadro de colesterol muito alto, porém sem saber o motivo da doença. Depois de mais uma internação, um médico aconselhou à família da paciente que buscasse um centro espírita, pois a causa da doença poderia ser espiritual. A mãe de Gabriella procurou um terreiro de Umbanda. Ao chegar no local, uma entidade informou que tudo aquilo era a espiritualidade da menina aflorando. “A espiritualidade arruma um jeito de chamar a gente. Quando a gente não entra por querer, há uma forma dela nos buscar e a forma que a espiritualidade me buscou foi através da doença”, conta a estudante.

Gabriella recorda que chegando ao terreiro foi atendida por um Erê (entidade infantil), o qual lhe disse que todo aquele processo se tratava de um adoecimento espiritual e seria curado se seguisse os rituais da religião. A jovem relembra que a princípio não quis fazer o ritual, porém a entidade lhe disse que, se não o fizesse, poderia voltar a adoecer e foi o que aconteceu. Dessa vez, ao sair do hospital, Gabriella foi a um centro de Umbanda em sua cidade e, desde então, passou a ter uma vida saudável. “Eu tenho total agradecimento à minha religião, porque eu sei que foi por ela; eu poderia não estar aqui hoje para contar meu relato, então eu sou muito grata às minhas entidades e à minha espiritualidade”, diz.

“A Umbanda é paz e amor
É um mundo cheio de Luz
É a força que nos dá vida
É a grandeza que nos conduz”

O trecho acima é uma estrofe do Hino da Umbanda, escrita por José Manoel Alves e oficializada como hino em 1961. Perguntada sobre o que a religião significa para ela, Gabriela declara: “Tudo o que eu sou, a minha identidade, construí dentro de um terreiro de Umbanda, e eu sou muito grata a isso. Eu não sei como seria se eu não fosse de um terreiro. Lá, a gente aprende a amar, respeitar as pessoas... A gente aprende a conhecer antes de julgar”.

A universitária conta que, por iniciar sua caminhada espiritual muito jovem, os costumes referentes à sua religião sempre foram tratados com naturalidade, e cita o exemplo da época da escola: quando os colegas diziam “Eu sou católico”, “Eu sou evangélica”, ela dizia “Eu sou umbandista”. Quando havia festinhas escolares e as pessoas diziam que haveria a presença de outros representantes religiosos, a Gabriella de oito anos falava: “Também vai ter meu pai de santo, porque se todo mundo vai ter seu representante, eu quero o meu”.

A união entre os fiéis é uma característica marcante na Umbanda, como diz Gabriella: “A gente trabalha muito essa questão da família. Pode não ser de sangue, mas depois que você entra no terreiro, todo mundo vira sua família. Nós nos protegemos não só dentro do terreiro, mas também fora das quatro paredes do Sagrado. A gente sempre procura estar ligados uns aos outros. Acreditamos que cada um de nós tem sua espiritualidade, seu Orixá”.

Orixás são guias e personificações de elementos da natureza e, segundo a crença umbandista, todas as pessoas possuem a proteção de dois deles: o Orixá de frente e o junto. Sobre isso, Gabriella acrescenta: “Eu sou filha de Iemanjá, Senhora das Águas, mãe de todas as cabeças. E, como filha de Iemanjá, trago muito essa questão do amor, do acolhimento, de abraçar as pessoas... De, às vezes, deixar os meus problemas de lado para tentar solucionar os problemas dos outros”.

Vários foram os momentos que marcaram a vida de Gabi, como é conhecida pelos familiares e amigos, nestes quase 12 anos de umbandista. Contudo, um que relembra com carinho foi o Ritual de Confirmação de Sete Anos na religião, em 2016. Ao se tornar adepto da Umbanda, o fiel é batizado; três anos depois, é realizada uma cerimônia de confirmação e quatro anos mais tarde, outra cerimônia, totalizando sete anos.

Em 2016, Gabriella estava no auge dos seus 16, 17 anos, cursando o terceiro ano do Ensino Médio, e nutria o sonho de entrar na Universidade Federal. Estudante de escola pública, ela ouvia os colegas dizendo que iriam fazer cursinho para entrar na Federal, então conversou com sua mãe, dizendo que queria muito entrar na universidade e que também gostaria de fazer um cursinho preparatório.

Entretanto, nesse ano, a jovem tinha o processo de confirmação dos seus sete anos e isso exigia tempo e dinheiro. Então ela teve que fazer uma escolha: o cursinho ou juntar dinheiro para cumprir sua obrigação na religião. “Minha escolha foi não fazer o cursinho e estudar por conta própria, para assim guardar o dinheiro para minha obrigação. Tinha tudo para dar errado, mas deu tudo certo”, recorda.

Naquele mesmo ano, Gabriella pôde realizar diversos sonhos: “Eu também tinha muita vontade de trabalhar no Jovem Aprendiz, mas ainda não tinha conseguido. Na esquina da minha casa tinha uma lan house, e do nada a dona me fez a proposta de trabalhar lá das 8h às 11h da manhã, assim eu continuaria estudando e eu amei. Não era o Jovem Aprendiz, mas não deixou de ser uma forma de ganhar dinheiro, que era o que eu queria: trabalhar pela manhã, estudar de tarde e à noite ter minha vida social e estudar para o Enem”, relata. O ritual de confirmação de Gabriella aconteceu no dia 16 de julho de 2016, dia especial na Umbanda, onde se comemoram Oxum (Orixá do amor). Além do Enem, a estudante fez mais duas outras provas e foi aprovada em todas.

O carinho, devoção e gratidão pelos Orixás é visível toda nossa conversa. Sobre Iemanjá, a jovem declara: “Eu costumo dizer que quando minha estrutura não aguenta, Iemanjá vem e me sustenta, porque quando penso que ninguém está olhando por mim, fecho meus olhos, acendo uma vela e falo com Iemanjá. Eu sinto o abraço do mar. Quando tudo está mal, digo ‘Eu vou na praia, só para ficar lá, sentada, ouvindo o balanço do mar e Iemanjá vai me dar uma resposta; mesmo que ela não me dê uma resposta, vai me trazer a tranquilidade e serenidade’”.

Ao sentar na grama, a umbandista tirou as sandálias em respeito, como diz ela, ao solo sagrado (Foto: Luciano Vagno/Caderno de Pauta)

Militante, Gabriella explica que compõe a Rede de Jovens de Matriz Africana e Terreiros do Rio Grande do Norte (Rejomate-RN) e que também já fez parte da Associação de Mulheres de Axé (AMA). Ela diz que a fé tem um papel fundamental em sua vida, pois é nela que encontra forças para continuar lutando e seguir acreditando em seus ideais. “Eu preciso de fé. Se não tenho fé naquilo que professo, no que faço, não vou conseguir estar bem comigo e com as outras pessoas. Eu tenho que ter fé ao acordar e ao dormir”, acrescenta.

Umbanda, como o nome já diz, é união de todas as bandas, e tem em sua essência elementos de outras religiões. No entanto, muitas pessoas a confundem com o Candomblé. Gabriella explica que a Umbanda é a única religião cem por cento brasileira, ao contrário do Candomblé, que tem seu berço no continente africano. A estudante de Enfermagem segue explicando que sua religião surgiu no dia 15 de novembro de 1908, em São Gonçalo, RJ, fundada pelo médium Zélio Fernandino de Moraes, aos 17 anos de idade, e que, assim como Gabriella, também estava doente e a medicina não conseguiu solucionar seu problema.

A parnamirinense conta que acredita no poder da natureza e fala sobre a relação dela com os Orixás: “Nós protegemos e saudamos a natureza, porque somos a natureza; acreditamos no poder das folhas e das ervas de Oxóssi, Senhor das Matas; acreditamos no poder das águas do mar e do rio, nos ventos de minha Mãe Iansã; acreditamos na justiça, e que ela está sendo feita a todo o momento por Xangô, que traz a balança que pesa o certo e o errado. Ogum, para a gente, traz a coragem e a força; Iemanjá é grande Senhora do mar. Saudamos a Oxum, que é doçura, a Grande Mãe, que traz não só a riqueza, mas também fertilidade e amor. Temos Omolu, Senhor da cura, aquele que está sempre coberto por palhas; temos também Exu, que, quando falamos sobre ele, muita gente fica com medo, achando que ele é algo do mal, muito pelo contrário, para a gente, é ele quem abre caminho, quem mais chega próximo do ser humano; e temos também Oxalá, o criador”.

A umbandista conta que ao nascermos, um Orixá é designado a tomar conta de nosso Orí (cabeça), e que não podemos o escolher, porém, segundo ela, nós que somos escolhidos, e isso envolve o dia e horário de nascimento, e o Orixá que estava regendo o ano. “Nós acreditamos que quando uma criança nasce, ela é amparada por Iemanjá, que entrega a criança para a divindade que será seu pai ou sua mãe”, explica Gabriella.

Também feminista, a universitária conta que aprendeu dentro do terreiro a lutar pelas causas femininas: “Aprendi com as Iabás (Oxirás femininos); mulheres tipo Iansã, uma mulher de guerra no tempo em que só homens estavam na frente das lutas, ela estava lá para guerrear. Então aprendi isso com ela, com a minha mãe Iemanjá, com a Pomba Gira, que são mulheres à frente de seu tempo e com quem aprendi que o lugar da mulher é onde ela quiser”, diz.

Uma realidade vivida quase que diariamente pelos adeptos de religião de matriz africana é a intolerância religiosa. “Eu acho que a gente sempre passa pelo preconceito, não só eu, mas todos os meus irmãos, e é muito triste”, diz a umbandista. O terreiro que Gabriella frequenta fica em sua cidade, Parnamirim, e ela conta que o mesmo já foi apedrejado por um morador da comunidade: “A gente não está fazendo nada de errado, estamos dentro de nosso direito.  Em um Estado que se diz laico, eu sou impedida de professar minha religiosidade”. A jovem ainda relata que já foi vítima de preconceito e relembra um episódio de quando ia para a escola com vestes e pano de cabeça brancos, nas sextas-feiras, dia sagrado para a religião, e os colegas ficavam olhando feio para ela.

A futura enfermeira prossegue contando outros casos de intolerância vividos por conhecidos e fala sobre a necessidade de uma sociedade que respeite a diversidade: “Nós temos outros religiosos que já foram apedrejados aqui em Natal, outros já foram espancados com a Bíblia... Um jovem já foi agredido ao ponto de ir parar na UTI e eu acho isso muito incoerente. Nós não andamos dentro dos ônibus cantando nossos pontos nem batemos nossos tambores, mas somos obrigados a ouvir a palavra das outras religiões. Então eu acho que do mesmo jeito que nós respeitamos, também queremos ser respeitados”, desabafa. A jovem conta que no ambiente universitário a situação é mais positiva. Além de encontrar outros irmãos de fé, a umbandista diz que pode andar livremente com seus trajes sem sofrer com os olhares tortos e preconceituosos, entretanto reconhece que outros fiéis não têm a mesma sorte.

No dia 20 de novembro de 2019, Gabriella recebeu a comenda Zumbi dos Palmares, que tem como objetivo evidenciar a força e resistência da cultura negra (Foto: Arquivo pessoal)

Gabriella fala ainda sobre a importância de que mais umbandistas ocupem espaços: “É importante que cada vez mais nós afirmemos nossa religiosidade. Dessa forma, a gente vai desmistificando. A gente vai apresentando, mostrando para as pessoas o que é nossa religião, que não é nada desse bicho de sete cabeças que o povo fala; e dessa coisa de macumba, que não passa de um instrumento musical. Quando me chamam de macumbeira, eu digo ‘Com muito orgulho, mas infelizmente não sei tocar a macumba’. Eu tento, em todos os espaços, desmistificar isso”. Para ela, a melhor maneira de acabar com a intolerância é na base da conversa e do ensinamento, tratando com calma e educação aqueles que falam mal da religião.

Um desejo que Gabriella revela é que o Rio Grande do Norte se torne um estado com intolerância religiosa zero; acrescenta que gostaria de ver o povo negro e umbandista ocupando mais as universidades e os espaços de poder, além de ter um representante defendendo suas pautas também na política. “Eu quero uma sociedade com mais amor. Que as pessoas possam se respeitar mais. Nós trabalhamos com o respeito e quero que esse respeito saia de dentro dos nossos terreiros e vá para todo Brasil e que se torne um país com mais respeito, um país com mais amor”, finaliza Gabriella.

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