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Recortes da Venezuela: uma Natal para refugiados

Contando com a generosidade do povo natalense, seis famílias venezuelanas chegam à capital


POR CAMILA EMILY, FRANCISCA PIRES E LUCIANO VAGNO

Os pobres em sua cabana chamada liberdade”, diz um verso do hino venezuelano. Outro trecho complementa: “Tremia de medo um egoísmo vil”. Um hino nacional talvez nunca tenha falado tanto sobre o seu povo: prefere o medo do desconhecido ao medo do que já conhece. Não existe perspectiva de vida, de quando chegará o aniversário, quando irá ver a família ou até mesmo a chegada do ano novo; o tempo parece não ter cronologia e a única prioridade é conseguir se manter vivo ao fim do dia. A situação aqui no Brasil não é boa, mas oferece os subsídios necessários à sobrevivência. Os refugiados venezuelanos procuram apenas um lugar para chamar de lar. Dos filhos deste – e de outros solos – és mãe gentil. Essa luta por uma vida mais digna é o que marca os dias de quatro famílias que tivemos a oportunidade conhecer: os estrangeiros que pedem ajuda nos semáforos das grandes avenidas de Natal passam a ter rosto, nomes e histórias.

Abrigo em meio ao caos

Apesar da pouca idade, Ioranda precisa passar o dia
no sinal com sua família
(Foto: Camila Emily/Caderno de Pauta)
Uma íngreme e já desgastada escada marca a entrada do local que estávamos procurando. O único som que se ouvia era o do silêncio, parecia não haver ninguém. Constituída por um conjunto de quartos pequenos e paredes cobertas por um cal capaz de esbranquiçar nossas roupas, a kitnet localizada na Cidade da Esperança, em Natal (RN), encontrava-se bagunçada e repleta de olhares que acompanhavam desconfiados nossa chegada. Eloisa Mata, 17 anos, foi a primeira a nos receber, trazendo seus documentos para uma apresentação mais formal, e com um riso envergonhado contou que não podia soletrar seu nome, pois em seu país natal não teve oportunidade de estudar.

Apesar da baixa estatura, Eloisa aparenta ser bem mais velha do que realmente é. Essa característica é comum a todos os personagens que conhecemos, como se o sofrimento e a luta diária para conseguir sobreviver conseguissem adiantar o tempo e envelhecê-los dez, quinze, até vinte anos mais rápido. Ainda assim, nossa primeira anfitriã traz consigo um olhar esperançoso de menina, até mesmo enquanto fala sobre a grave crise da Venezuela; afirma que não consegue se recordar de uma época em que a vida no seu país foi boa. Eloisa faz essas tristes constatações, enquanto amamenta a filhinha Suleme, de dois anos.

Aos poucos, aproximaram-se o casal Yurleni e Daniel Mata, tios de Eloisa. Ele, aos 29 anos e ela, 24, chegaram a Natal com o grupo há cerca de 20 dias, trazendo seus dois filhos. Os dois são casados desde 2010 e viviam na cidade de Tacupita, pertencente ao estado de Delta Amacuro. O estado natal da família é conhecido pelas suas belas paisagens e basta uma pesquisa breve para ficar admirado com as riquezas naturais do local. No entanto, não é assim que Yurleni o descreve: “Os governantes de lá não fazem nada, nunca. Vimos crianças morrendo de fome, pessoas morrendo sem ajuda, não tem nem remédio,” desabafa.

O preço da liberdade

Yurleni e seu marido, Daniel, preferem viver no Brasil a voltar para sua terra natal (Foto: Luciano Vagno/Caderno de Pauta

O grupo composto por mais ou menos seis famílias chegou ao Brasil dois meses atrás, entrando no país por Roraima e passando por Manaus, Belém, Maranhão e Caicó antes de chegarem à capital do Rio Grande do Norte. Uma parte dessas pessoas está hospedada no hotel de baixo custo “Hotel Cidade do Sol”, onde a diária custa em média 20 reais. Porém, a família com que conversamos está abrigada em frente ao hotel e ao lado de um restaurante, pagando quinzenalmente o valor total de R$ 400 pelo aluguel de um quarto – R$ 200 e depois mais R$ 200. O valor que é, de fato, muito alto tem sido motivo de preocupação para os venezuelanos que, mesmo recebendo doações de anônimos e pedindo no sinal, não conseguem apurar o suficiente para lidar com todas as despesas: “Aqui se não trabalhar muito, não come,” diz Yurleni.

Vale destacar que muitos deles sequer falavam espanhol, boa parte foi apenas alfabetizada em uma língua indígena local, cujo nome não conseguimos descobrir através das árduas conversas em portunhol. Por este motivo, a comunicação com as pessoas que vivem perto é difícil, dando margem a algumas situações abusivas, como superfaturamento na compra de comida ou outros serviços básicos que precisam utilizar. Yurleni, Daniel e Eloisa contam que são acordados pelo proprietário da casa para irem trabalhar, mas não souberam especificar o tempo de trabalho que realizam durante o dia. Essa versão foi negada pelo proprietário da casa, João Pereira.

“Nunca trabalharam para mim, isso é mentira. Inclusive, me arrependo de ter alugado [o quarto], porque eles são barulhentos e bagunceiros. Já me deram prejuízo quebrando uma porta,” conta João. O senhor lamenta a decisão de ter oferecido abrigo aos venezuelanos, porque, segundo ele, acreditava ser uma única família e não várias, como vieram. Por causa do grande número de crianças, a desordem e barulho são os fatores que mais o incomodam enquanto locador. O homem se mostra muito contrário à permanência dos estrangeiros, afirmando que eles são muito espertos e chegam a apurar até R$ 300 em um dia pedindo no sinal.

O taxista, Lourival da Silva, cujo ponto de trabalho é próximo ao local, completa a fala afirmando que o grupo recebe ajuda “até demais” – pessoas anônimas costumam promover sopões beneficentes e doam roupas para eles: “O brasileiro é solidário né? Fazer o que,” finaliza.

Sob o olhar do senhor Custódio 

Curioso para saber o que estava acontecendo, surgiu o carismático senhor Custódio Jaime, 56. As mãos calejadas indicam que os dias não lhe foram fáceis. O venezuelano nos conta que está com sua esposa e seus dois filhos há duas semanas na capital potiguar. Eles fazem parte do grupo indígena Warao, e vêm do município de Antonio Díaz, também localizado no estado de Delta Amacuro. Sua entrada ao Brasil foi pelo estado do Pará, depois pelo Maranhão, em seguida, Ceará e, por fim, Rio Grande do Norte. Olhando pela janela sem vidro, o senhor conta o motivo que o levou a sair de seu país natal: “O preço dos alimentos está muito caro; não tínhamos dinheiro para continuar morando lá. Por isso chegamos aqui buscando um melhoramento na vida”. Ele prossegue dizendo que encontrou na capital natalense essa melhora, e a maneira de consegui-la é indo para as ruas: é de lá que eles conseguem dinheiro para comprar alimento e pagar o aluguel.

Apesar das dificuldades, o senhor Custódio mantém o bom humor (Foto: Luciano Vagno/Caderno de Pauta)

Perguntado sobre o que mais sente falta da Venezuela, se prontifica a dizer: “Nós não conhecemos nem andamos com políticos, mas um presidente ajudava bastante: o presidente-comandante Hugo Rafael Chávez Frias. Ele ia por toda a Venezuela – toda, até o município Antonio Díaz”. O carinho por Hugo Chávez é compartilhado por diversos venezuelanos, pois, de acordo com Custódio, Chávez fazia o país evoluir. “Quando o presidente morreu [em março de 2013] entrou esse, como chama? Nicolás Maduro. Aí ficou mal,” acrescenta.

Custódio declara que, em Natal, até o momento, ele e os demais refugiados não receberam nenhuma ajuda do governo do estado, porém, contam com a solidarização das pessoas que lhes trazem sopa durante a noite. O venezuelano explica que, atualmente, ele e a família não possuem cozinha, nem cama. Mesmo passando por momentos de dificuldades, o homem mantém o bom humor e revela que, apesar de estar há alguns dias em solo potiguar, só agora está conhecendo a cidade.

Custódio e seus familiares confeccionaram placas em português para pedir ajuda nas ruas de Natal (Foto: Luciano Vagno/Caderno de Pauta)

Enquanto estávamos conversando com o senhor Custódio, uma outra família venezuelana chegava ao lar temporário após mais uma manhã pelas ruas de Natal. Orlando, sua esposa e seu filho de um ano e três meses nos cumprimentaram com sorrisos tímidos, acompanhados de um “buenos días”. O senhor Orlando, cujo sobrenome não pudemos entender, não soube nos dizer sua idade, entretanto declarou: “A vida aqui em Natal é boa; nós precisávamos vir para Natal. Precisamos ir à rua para poder comprar comida, roupa para a criança e pagar esse aluguel. Os outros venezuelanos não ajudam. O presidente é muito mau. Então, depois que aqui chegamos, o povo de Natal tem nos ajudado um pouquinho na compra de comida, fralda para a criança e remédio”.

Orlando e sua família costumam pedir ajuda nas ruas de Natal das 8h às 13h (Foto: Luciano Vagno/Caderno de Pauta)

Orlando e sua família estão há três noites no local – são naturais da cidade de Tucupita, que fica no mesmo estado do senhor Custódio e das outras famílias que conhecemos. O venezuelano conta que estudou apenas quatro anos, mas apesar do pouco tempo em território brasileiro, ele diz já compreender algumas palavras em português. Na porta de seu minúsculo quarto, Orlando nos mostra, com um sorriso no rosto, o cartaz improvisado que levou à rua. Subitamente, surge atrás dele sua mãe, carismática e com um vestido “chamativo”. Logo, toda a família está reunida na porta do quarto.

As famílias entrevistadas vivem em situação precária na Grande Natal (Foto: Luciano Vagno/Caderno de Pauta)

Os semáforos que trazem esperança 

Dona Esperanza afirma não ter comido nada
desde a hora que acordou
(Foto: Francisca Pires/Caderno de Pauta)
Debaixo do agressivo sol das 11h em Natal, um grupo composto por três mulheres e duas crianças pedia ajuda no movimentado semáforo da Avenida Engenheiro Roberto Freire. Carregando características placas que explicam sua situação, as mulheres aproveitavam o sinal vermelho para se aproximar dos carros na esperança de serem ajudadas com doações de objetos ou dinheiro. No momento de nossa chegada, avistamos Maria aproveitando a sombra – uma adolescente de 15 anos que carregava em seus braços cansados seu primeiro filho, José Davi, de seis meses; ao lado deles estava a pequena Ioranda, de quatro anos.

A mãe das meninas, dona Esperanza, 40, aproxima-se falante e animada. Com seus muitos adereços no pescoço e pulsos, reclama da pouca ajuda que recebeu naquela manhã e mostra suas poucas moedas como prova da insatisfação. Apesar disso, se mostra forte e ao ser perguntada se estava cansada responde convicta que não e que está longe de ficar. Assim como todos os outros personagens, a senhora bem-humorada diz não ter saudade da Venezuela, afirmando que apesar da dificuldade, estar no Brasil é muito melhor. Esperanza reclama do valor do táxi que as leva para casa, aquela mesma dos outros entrevistados na Cidade da Esperança, pois todos os dias pagam cerca de R$ 30 para ir e mais R$ 30 para voltar. Seu horário de trabalho nas ruas vai sempre das 8h da manhã às 13h. As mulheres nos contam que, até aquele presente horário, não tinham comido nada e que compram todos os dias seu almoço perto de casa. Apesar de gostarem muito de Coca-cola não a compram mais, porque da última vez o litro saiu por R$10.

Mesmo passando o dia nas ruas, o apurado ainda costuma ser pouco (Foto: Camila Emily/Caderno de Pauta)

A jovem Maria, bem mais desconfiada e tímida que a mãe, conta que o pai do seu filho ainda está na Venezuela, mas que pretende vir em breve para o Brasil, pois a situação lá, segundo ela, só piora. A irmã, Ioranda, vestida com uma roupa contendo a bandeira do Brasil, não saiu um minuto do lado dela e do sobrinho. A pequena não considerou falar muito, se deteve a alguns gestos e risadas contidas diante das nossas tentativas de aproximação. Aos poucos, vendo a desinibida fala da mãe que faz jús ao nome que tem, as meninas foram ganhando confiança, perdendo a timidez e interagindo mais diretamente com os nossos questionamentos. Um pouco mais distante do sinal, estava a terceira mulher. Também filha de Esperanza, muito calada, ela não parecia falar espanhol nem entender o que tentamos dizer; dessa, infelizmente, não conseguimos captar sequer o nome.


O que diz a história


Boa parte dos membros das famílias
refugiadas são crianças
(Foto: Camila Emily/Caderno de Pauta)
Com a crise política e econômica que assombra a Venezuela, os filhos dessa terra se veem obrigados a deixar o país. Pela proximidade com algumas cidades, Rondônia é o principal destino – seja de moradia ou de compras. São seis anos de um caos que só aumenta e uma miséria que se alastra pelas classes mais vulneráveis da sociedade.

Se outrora fora um dos países mais ricos da América Latina, atualmente não há mais resquícios da “Venezuela Saudita”, apelido que faz referência a Arábia Saudita. Hoje, a alusão faz um pouco mais de sentido apenas se levarmos em consideração que em ambos os casos existem questões geopolíticas envolvendo o petróleo. A crise, que deu os primeiros indícios já no governo chavista, ficou ainda pior com o atual presidente, Nicolás Maduro.

O historiador Thiago Morais explica que a ascensão de Maduro e a queda no preço do petróleo arruinaram a economia local e que não há como entender esse momento histórico da Venezuela sem entender o contexto geopolítico no qual o país vive. “Tal crise levou o Estado venezuelano a ser acusado de ter se tornado uma ditadura, cometendo crimes contra a humanidade. Nesse momento, [a crise] parece estar longe de ser solucionada e Maduro longe de ser afastado,” afirmou.

No nível regional, entramos em contato com a assessoria de imprensa do Ministério Público Federal, que não pôde nos conceder uma resposta concreta; apenas afirmou estar apurando quem de fato é responsável pelo caso em Natal. A Procuradoria da República do Rio Grande do Norte foi citada como uma das possíveis responsáveis por viabilizar ações voltadas a estas pessoas.

O caso ainda é tido como muito recente e talvez dentro de alguns dias possamos obter respostas. Por enquanto, nossos amigáveis personagens seguem na luta pelo pão de cada dia. Segundo um dos taxistas que realizam seu transporte diário, o próximo destino será a capital pernambucana. Talvez em Recife, eles continuem contando com a solidariedade e hospitalidade de um povo que é, em sua maioria, caloroso o suficiente para estender a mão.

2 comentários:

  1. Muito boa a matéria. É sempre interessante saber de forma mais aprofundada a situação dessas pessoas e o que uma crise pode fazer com inúmeras famílias de um país...

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