Por Jéssica Cavalcanti e Marcelo Rocha
O Sistema Único de Saúde brasileiro
completou 30 anos em março deste ano e, desde a sua fundação, temos ouvido
falar dele como um símbolo da ineficácia do governo, sempre caracterizado por
adjetivos catastróficos. Isso porque estamos ridiculamente alienados ao que nos
é mostrado pela grande mídia.
É disseminada, constantemente, a ideia
de que “quem depender do SUS morre na fila de espera” e que, para garantir um
bom atendimento médico, somente apelando para os planos de saúde privados.
Estes, que arrancam mensalidades absurdas para dar ao povo o que deveria ser
seu por direito, de acordo com a Constituição. Verdade seja dita: o problema da
saúde pública não é falta de dinheiro, mas falta de dinheiro destinado a ela. E
essa é uma realidade histórica no Brasil.
O Sistema Único de Saúde, de acordo com
o Ministério da Saúde (MS) em dados de 2015, é utilizado por cerca de 71,1% da
população brasileira. Não é novidade que a maior parte do contingente
populacional brasileiro utiliza a rede pública de saúde.
O presidente do Conselho Nacional de
Saúde (CNS), Ronald Ferreira dos Santos, destacou, na 22ª Conferência Mundial
de Promoção da Saúde: “Esperamos que, com esta conferência, digamos ao mundo
que não há democracia sem SUS e nem SUS sem democracia”. O vice-presidente da Associação Brasileira de
Saúde Coletiva (ABRASCO), Paulo de Goés, concordou: “A melhor forma de defesa
do SUS é intensificarmos o esforço para garantir a reforma sanitária. Não há
saúde sem justiça social, nem democracia. Não há SUS sem democracia. Não há promoção
de saúde sem democracia”.
Independentemente de suas falhas, o
Sistema é, sobretudo, um triunfo popular, um marco da democracia. No entanto,
essa conquista é frequentemente menosprezada pelos pessimistas que enxergam o
SUS como um instrumento incompetente e fracassado. A massa, por sua vez, é
levada a crer nessas afirmações, por não conhecer o processo histórico da luta
pelo direito à saúde pública no país.
Pensando nisso – e a fim de amenizar a
imagem negativa criada pela falta de informação daqueles que não conhecem a
fundo a gloriosa vitória do Sistema que, hoje, garante mais que cidadania,
garante que os brasileiros façam parte de um contexto mundial em que o Brasil
aparece no patamar dos países mais elogiados pelo seu sistema de saúde –
faremos aqui um breve apanhado histórico de como surgiu o Sistema Único de
Saúde. Para isso, precisamos voltar um século no tempo, para entendermos o
impacto que a criação do SUS teve na realidade da população brasileira.
A
saúde pública no Brasil: Direito x Privilégio.
No início do século XX, as epidemias de
doenças como cólera, febre amarela, varíola, entre outras, aterrorizavam os
brasileiros. A classe trabalhadora sofria em escala maior: não havia condições
na saúde pública para conter o alastramento das pestes. Isso os deixava à mercê
dos cuidados da filantropia, incentivada pela igreja.
Contudo, a preocupação com a manutenção
da imigração e a consequente produção do café exigiu do governo uma providência
diante da situação caótica: a vacina produzida se tornou obrigatória para toda a
população. A solução foi, portanto, outorgada com repressão militar a qualquer
um que se opusesse, sendo rotulado como “inimigo da saúde pública”.
A fim de conter as greves e possíveis
futuras rebeliões da classe operária, em 1923, o deputado Elói Chaves expõe o
projeto de lei que determina a criação de caixas de aposentadoria e pensão para
os trabalhadores, tal como assistência médica. Simultaneamente, o doutor
Geraldo Paula Souza cria, no Rio de Janeiro, o centro de saúde, com a ótica
educativa de uma medicina de prevenção, e cuja meta também era envolver-se
diretamente com as condições sociais da população, através do trabalho
realizado no núcleo familiar.
Em 1930, Getúlio Vargas é eleito
presidente da república pela primeira vez, sob a marca de “pai dos pobres”. O
primeiro IAP (Instituto de Aposentadoria e Pensão) foi criado por ele então, em
1932, especificamente para a categoria dos trabalhadores marítimos, que tinha
como objetivo também separar verba do povo para investir em assistência médica
futura. A população, no entanto, que não contribuía para a manutenção dos
institutos, não tinha acesso a saúde.
Como se a situação já não fosse ruim
para muitos, em um contexto de industrialização já crescente, Getúlio aplicou o
dinheiro investido nos IAPs para financiar a indústria no Brasil, deixando até
mesmo os trabalhadores colaboradores se verem com seus direitos lesados.
No contexto de uma segunda Guerra
Mundial, os centros de saúde sofreram as consequências da influência americana,
se tornando obsoletos e ficando para trás no processo de reforma dos métodos de
atendimento à saúde, o qual se constituiu em um sistema de medicina
especializada, tornando-se ainda mais inacessível. Nesse processo, a indústria
farmacêutica cresceu significativamente.
Embora tenha sido deposto como ditador,
Vargas retornou ao poder para cumprir mais um mandato, que não foi concluído,
devido ao seu suicídio. Contudo, nesse meio tempo, ele criou o Ministério da
Saúde. Após sua morte, Juscelino Kubistchek leva a nação a um novo período de
crescente desenvolvimento econômico como o novo presidente da república. Com
ele, cresce também a iniciativa privada na área da saúde, dando espaço para as
empresas médicas se instalarem no país.
O ano de 1964 foi um marco e divisor de
águas para a nação brasileira. Com a queda do então presidente João Goulart, o
general Castelo Branco assume o poder, ao lado dos militares. Um tempo marcado
por repressão e censura se alastra pelo país. A privatização dos serviços é
estendida até os IAPs, em uma unificação que recebeu o nome de INPS (Instituto
Nacional de Previdência Social). O dinheiro das contribuições reunido em um só
instituto foi investido, mais uma vez, em muitas outras coisas, enquanto a
saúde pública ia ficando à margem do sucateamento.
Nesse contexto, o movimento social
começa a se articular em favor de melhores condições de assistência médica, a
fim de promover um sistema de saúde abrangente e eficaz para todos. No centro
da periferia, as manifestações começaram a ganhar adesão popular e visibilidade
externa, expandindo-se em diversos municípios.
O movimento popular de saúde, em
consonância com outros movimentos sociais, foi às ruas contra a ditadura
militar. A falência do sistema previdenciário foi, portanto, a gota d’água para
o movimento que marcou a década de 80: o Diretas Já. Em meio a esse período de
lutas, uma vitória: a criação do tão sonhado Sistema Único de Saúde.
O SUS surgiu como resultado das
mobilizações populares. Seus princípios básicos consistem em: universalidade,
integralidade, equidade e participação popular, a fim de promover assistência
médica igualitária a toda população sem distinções de classes. Contudo, o
processo de lutas ainda estava muito longe do fim. A implantação do sistema se
deu gradualmente, ou melhor dizendo, ainda se dá.
Está claro que a saúde pública nunca foi
colocada como prioridade entre as políticas de governo no Brasil. E, embora o
processo de Reforma Sanitária e a implementação do SUS tenham representado um grande
progresso nessa área, a verdade é que temos visto, desde sempre, uma
contradição entre avanços e retrocessos no que diz respeito à saúde pública.
Desde o governo de FHC, na década de 90, com a intensificação da política
econômica neoliberal, o corte de gastos com os direitos sociais entrou em
divergência com a recém promulgada Constituição Federal de 88.
Nos últimos anos, o que se
observou foi um distanciamento da concepção de direitos universais, uma vez que
a prioridade do Estado tem sido combater o déficit público, deixando os
direitos sociais em segundo plano. Essa contradição é justamente o constante
embate entre a necessidade de fontes estáveis e seguras para financiar o SUS e
o que alguns autores chamam de “princípio da contenção de gastos”.
Os defensores do SUS travaram uma
batalha intensa contra a privatização do governo de Fernando Henrique Cardoso,
sem desistir dos ideais estabelecidos, e venceram. O sistema de saúde que temos
em vigência hoje no Brasil é o resultado de muitas mobilizações, debates e
persistência por parte dos militantes do movimento.
Mas,
afinal, o SUS funciona ou não funciona?
Podemos enxergar que, com o passar do
tempo, as melhorias têm vindo, gradativamente, como tudo
que é bom e complexo. Devemos levar em consideração que o Sistema Único de Saúde
é uma realidade recente no cenário brasileiro, tendo recém completado os seus
30 anos – conforme já foi dito – desde a fundação, na 8ª Conferência Nacional
de Saúde, em 1986.
Há, portanto, uma necessidade emergente
de uma desconstrução do tabu referente à supremacia da saúde privada sobre a
pública, sabendo que, desde que hajam pessoas comprometidas a dar continuidade
a essa luta, chegaremos ao SUS projetado na mente dos primeiros adeptos do
movimento, não importando quantos anos isso ainda dure.
Por hora, queremos apenas reiterar que a
imagem nauseante que muitos de nós temos da saúde pública no Brasil é uma
herança secular e que ela não reflete fielmente a funcionalidade efetiva do
Sistema na vida de milhões de pessoas, dependentes dos serviços ofertados por
ele. E, assim, queremos deixar esclarecido que, tendo em vista a sua construção
em um contexto social e político de clientelismo e privilégios para as classes
mais altas da sociedade, só a existência do SUS já é motivo de orgulho para o
país. Porque ele representa a força do povo quando se une por um mesmo
propósito. Representa as necessidades de um Brasil esquecido pelos governantes,
finalmente tendo voz. Ele representa eu e você, e a nossa incessante luta por direitos
universais e pela democracia.
Fontes: - Filme documentário “História da saúde
pública no Brasil: um século de luta pelo direito a saúde”
-
“O
Direito Universal à Saúde em Risco: A Fragilidade Histórica do Financiamento do
SUS e as Incertezas dos Governos Lula” de Áquilas Mendes e Rosa Maria Marques.
- “OMS
defende fortalecimento e ampliação do Sistema Único de Saúde” disponível em: https://nacoesunidas.org/opas-pede-fortalecimento-e-ampliacao-do-sistema-unico-de-saude-do-brasil-em-conferencia-mundial/
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