Por Sebastião Guilherme
Albano
Fui à Nova York ao
menos cinco vezes até agora, mas esta última, em que passei quase um mês entre
junho e julho, foi a mais aventurosa, ainda que tenha sido a mais planejada de
todas as viagens que já fiz. Comprei um bilhete de avião para aterrissar em
Nova Jersey por que gostaria de ficar daquele lado da metrópole, cuja escala em
relação à Manhattan, com um pouco de imaginação, se aproxima muito à de Niterói
em relação à cidade do Rio de Janeiro, ou mesmo à Zona Norte e à Zona Sul aqui
em Natal.
Minha intenção, como da
segunda vez que estive lá, era consultar bases de dados das bibliotecas das
Universidades de Nova York, da Universidade da Cidade de Nova York e da Universidade
Columbia. As últimas duas tiveram de ser preteridas, com efeito ambas as vezes,
mas desta feita por um motivo mais nobre. O acervo da NYU, Universidade de Nova
York, que só conheci em sua inteireza agora, apresentou-se tão imponente e as
facilidades de acesso a fotocópias e digitalização que me ofereceram, de modo
gratuito, pareceram-se um milagre que não aconteceria em outra universidade
dali, onde tudo custa, pelo que na biblioteca da NYC fiz meu quartel general. Recordo-me
agora mesmo com nostalgia das inúmeras descidas e subidas, entre os pisos oito
e nove, em uma escada com uma vista portentosa para o saguão do edifício, para
apanhar material para scannear. Devo remarcar, contudo, que ao final da minha
estada percebi que essa perspectiva algo pessimista em relação às expectativas
quanto aos serviços que as demais bibliotecas das universidades de grande
reputação em Nova York poderiam ter oferecido foi suscitada devido a que o acervo
da NYU era mesmo inesgotável e minhas pulsões me levaram a optar por aquele
universo fabuloso e não buscar outros por enquanto. Faço essa revisão porque
lá, nos Estados Unidos, há uma espécie de camaradagem em relação ao acesso às
instalações desse tipo de instituições, semi-públicas ou públicas, algo bem
valioso ali. Bibliotecas, bases de dados, academias, restaurantes, entre outras
facilities dessas universidades, soem
ser não apenas de livre acesso, mas a convivência com a comunidade não
acadêmica é incentivada. E a NYU fica no similar ao que seria o coração da
cidade, em pleno Greenwich Village.
O
edifício da biblioteca, por fora um bloco monolítico marrom, como se fosse uma
cama com um lençol estendido sobre ela, está plantado diante da Washington
Square e com vista para o seu
arco do
triunfo, êmulo do parisiense, lugar onde culmina ou inicia a reputada Quinta
Avenida. Com seus 12 andares superiores de grandes prateleiras repletas de obras
de todas as partes do mundo e de muitas áreas do conhecimento autorizado pelo
regime de saberes do Ocidente, mais alguns subterrâneos, me convidavam a uma
permanência exclusiva e fiel, mesma que tive de trair por conta das ofertas museográficas
(muito concorridas e sem nenhuma possibilidade de se atentar com esmero para as
obras das exposições ali organizadas: fui ao novo Whitney e ao Moma, ademais do
museus da fotografia e de algumas galerias um pouco excêntricas e preços
surrealistas), e cinematográficas existentes na região, ademais de alguns restaurantes
até modestos que em geral recorro quando estou ali. O
Film Forum, o
Angelika Film
Center, o IFC e os cinemas do
Lincoln
Center, ademais dos hambúrgueres com batatas fritas e da água gelada com
gás do
The Smith, ou do
Papaya Dog (pé
sujo sem remorsos)
e dos bem econômicos
restaurantes vietnamitas
me distraiam
um pouco da faina acadêmica mais ostensiva e satisfaziam, enquanto mastigava,
minha mania de observar como as pessoas transitam e solucionam problemas
urbanos tais como atravessar uma rua, comprar alguma coisa, pegar um ônibus.
Outro
detalhe: há muito adquiri, nos Estados Unidos, a mania de ver as partidas de
rua nas quadras de basquete. Em 2006, vi um jogo do San Antonio Spurs no estádio daquela cidade texana e foi uma
experiência inesquecível, malgrado para mim quase ininteligível, devido ao lugar
em que fiquei e das vocalizações de anúncios e as músicas extremamente altos
que me distraíram sobremaneira, em especial no momento das cheers girls, mesmas que eu imaginava, com aquele som, entre ouras
coisas, todas em torno a uma mesa de um pub
brindando. Por isso, mais recentemente, quando morei um ano e meio no Texas de
novo, então em Austin, em vez de ver os Longhorns,
o time da Universidade do Texas naquela cidade, jogando num daqueles ginásios
fantásticos, preferia assistir as partidas rueiras e contraí o vezo de tentar
examinar como se naturalizava a excelência que na quadra oficial
e midiática se multiplica tecnicamente.
Explico: confesso que minha curiosidade
é para o que faz os jogadores e as jogadoras construírem a habilidade para
serem, há um século, os melhores do mundo desse esporte, e confesso que ainda
não encontrei a solução para esse enigma. Os times norte-americanos nas Olimpíadas,
por exemplo, de ordinário não são formados por seus estelares, mas por
jogadores universitários. Aqui há campos de futebol espalhados por todos os
quadrantes, gozamos de fama de artistas desse esporte, mas somos intermitentes
em nossa trajetória em campeonatos que, sob o modelo valorativo dominante, são
o termômetro de qualidade, tal como os festivais de cinema o são para os
filmes. Portanto, o basquete de rua dos Estados Unidos também tende a me distrair
dos interesses meramente cerebrais, mesmo que tenda a racionalizar demasiado
essa fruição também. Afinal, examinar é uma ação quase clínica.
World Hotel, na rua Bowery, número 101, em
Lower Manhattan, uma parte antiga da cidade e logo na saída da ponte que vem do
Brooklyn, chamada de duas pontes (muito conhecida como ponte do Brooklyn,
talvez já globalmente icônica pelo enquadramento e as variações de cinza
propiciadas pela fotografia em preto e branco de Gordon Willis no filme
Manhattan, de Woody Allen, 1979), que atravessa
a baía e no sentido Manhattan também desagua ali, em Chinatown, um lugar muito
parecido com uma cidade do interior do Brasil não fosse que constantemente esteja
repleto de pessoas em atitudes céleres.
Esses eventos espartanos para umas
férias na supostamente dionisíaca Manhattan não me teriam sido estranhos desta
vez, devido a que nas outras regiões em que vou, quando só, sempre acabo a
maior parte do tempo em lugares semelhantes: livrarias e bibliotecas, com algum
desvio impronunciável aqui para aliviar a tensão do excesso de exercício
intelectual. Não obstante isso, devo admitir que desta vez em Nova York o mais
curioso de tudo foi a minha vizinhança. Fiquei em um hotel chamado
Sua semelhança com nossas vilas
descansa no fato de que naquela região há uma variedade vultosa de odores,
cores e mercadorias vinculadas a tradições que a despeito de marcadamente orientais
se aproximam muito a qualquer mercado de cidade pequena nacional e, em
compensação, se distanciam por demais do modelo nova-yorquino de comércio de
rua: vende-se de peixe
fresco a gengibres gigantes, folhas de bambu e chapeús camponeses chineses, tudo
à mostra do transeunte nas elegantes calçadas da Big Apple. A grande diferença entre
o enclave chinês de Manhattan e algum vilarejo brasileiro sobressai na ausência
dos bons-dias muito típicos entre as pessoas que se cruzam pela manhã em nosso
interior (ato nem sempre agradável, como diria Rubem Fonseca) e ali quase
inexistente em razão de uma atávica pressa em montar barracas, descarregar pescado
e hortifrutigranjeiros, arrumar objetos budistas e mesmo shintoístas, ainda que
esses em menor escala, entre outros produtos de aparência distante. A minha
perplexidade inicial com certas características do cotidiano daquela região em
especial me levou a que um dia confundisse um fabuloso templo budista com uma
Igreja Universal, por certo com várias sedes por lá também. Nesse dia cortei o
cabelo numa barbearia chinesa e assisti a uma missa católica em mandarim.
Não
obstante, o que mais me chamou a atenção foi o hotel em que me hospedei, ou me
hospedaram. Quando desci do transporte que me deixou em frente ao edifício em
estilo francês do século XIX, não me pareceu de todo ruim, pois em Buenos
Aires, para usar um exemplo Sul Americano, há prédios semelhantes que abrigam
hospedarias suntuosas e com um preço mais realista. Mas não foi o caso. Com
cinco andares e sem elevador, causou uma impressão diversa a tudo o que eu
pensava do lugar. Com longos e estreitos corredores, com portas de quartos
enfileirados muito próximas umas das outras, que me levaram a pensar, guardadas
as proporções em face do castelo em que se passa a película, àqueles do filme
de Stanley Kubrick, The Shinning (O iluminado, 1980), banheiros
compartilhados, detalhe que provocava um constante trânsito nos corredores,
confesso que alguma noite sonhei que estava sonhando estar naquele lugar.
Mais o que chamou a minha atenção de verdade
foram os quartos: a maior parte deles sem janela, com as dimensões de um cômodo
numa casa das Viagens de Gulliver
(Jonathan Swift, 1726/1735) e com um sistema de ventilação central que parecia
cumprir funções de uma rede de sonoplastia, uma vez que eu podia ouvir sintonias
de rádio, conversas pouco aptas para menores, programas de tv, entre outras
bizarrices não apenas do vizinho, mas de dois ou três ou mesmo quartos mais distantes
do meu próprio cafofo. Não que inexistam quartos semelhantes em outros hotéis
ao longo do mundo, parece que no Japão são até chamados de Hotéis Cápsula, mas
pelo preço cobrado pelas acomodações, era-se de esperar algo menos
desconfortável. Não reclamei demasiado, tão somente me concentrava em estudar,
ver os filmes que necessitava para futuros trabalhos e aproveitar o movimento
nas ruas de uma metrópole tão cosmopolita que alberga inclusive uma cidade no
interior de seu corpo: Sinédoque Nova
York (Charlie Kaufman, 2008).
Nessa seara, dos filmes assistidos por lá gostei muito de
um documentário acerca da trajetória de Brian de Palma (revi cenas de Olá, mamãe, 1970, Carrie, 1976, Dress to Kill, 1980, Scarface, 1983, e Missão impossível, 1999, todos clássicos comentados por ele, hoje
um idoso gordo e, parece, em vias de se aposentar: a idade pesa, disse ele) e
outro documentário um pouco atávico a respeito dos mecanismos de dramaticidade
do regime comunista coreano, Sob o sol
(Vitaly Manzky, 2015), que demonstra os mecanismos de encenação
da satisfação dos habitantes do país com o que King Jong-Um assinala como um
avanço técnico, militar ou social. Este último filme eu comparei, um pouco a
contragosto por saber de antemão a improcedência desse cotejo, com o magnífico The Autobiography of Nicolai Ceausescu
(Andri Ujica, 2010). Talvez por que ambos me fizeram conjeturar de modo diverso
que no formato de sociedade em que vivemos, mais que a espetacularização, conceito
ao que o lugar comum atribui a superficialização das figuras que nos fornecem
elementos de intelecção acerca do que vemos, sentimos etc., vige um modelo de
comportamento e emocional histérico e cínico. Por exemplo, no campo do
entretenimento ou do jornalismo, alardeiam-se, visualmente, dados de certa importância
conjuntural que não são propriamente esquecidos ou minorados pela audiência como
querem alguns teóricos, mas, como um simulacro, são assimilados como um modelo ou
uma representação e talvez até como um mero desvio ou variação de uma norma que
ninguém sabe mais qual é ao certo. Isso fica nítido no noticiário policial
brasileiro, ademais do político e etc., por acaso, às vezes, a mesma coisa. No
filme coreano, as cenas com crianças sendo ensaiadas para representarem ordem e
felicidade seriam curiosas, não fossem um clichê social e fílmico superlativo.
Aliás,
outra divagação a propósito dos filmes e suas fontes de inspiração fora da
tela, no mundo da vida, se hoje ainda podemos discernir uma coisa da outra: se
no campo da política partidária e dos eventos que temos visto pelos meios
audiovisuais tradicionais esse fenômeno (espetacularização, simulacro,
comportamento histérico e cínico) se acentua por conta da celeridade com os
profissionais devem enquadrar os eventos que se apresentam, os temas de interesse
empresarial que arremedam temas de interesse público, ou vice-versa, no caso
das redes sociais, talvez com atores leigos que procuram ser epígonos dos estrategistas
dos meios mais sólidos, salienta-se a ilusão de que esse incauto, como
estratégia de convivência ou sobrevivência, possa, por intermédio de uma mídia
cuja característica é o espalhamento descontrolado, manter as rédeas sobre a imagem
ou mesmo sobre a autoimagem ou sobre a imagem de outrem, o que suscita uma notabilização
desse histerismo cínico. Sendo assim, cinicamente, me permito tanto aceitar a
comparação entre filmes social e poeticamente tão díspares (ainda que um
visivelmente inspirado no outro) como afirmar que minhas férias foram, falando de maneira até modesta para os padrões de mensuração
da felicidade pelos que são escrutinados comentários semelhantes em especial
nas redes sociais, deveras outstanding, great,
amazing!!!
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