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Um Vândalo

Caprichoso nos detalhes, o entusiasta da música Eustachio Lima conta sua trajetória no rock potiguar dos anos 60 

Por Augusto Ranier e Yuri Gomes 

Tarde de sábado. Flores e plantas rodeiam uma casa verde de esquina no bairro da Candelária, zona sul de Natal, a famosa marca dos Rolling Stones adesivada no portão da garagem destaca-se do cenário pacato da rua residencial e dá pistas do que se segue. 

Um sujeito com os cabelos arrepiados, short de pijama e camisa preta estampada com a capa do álbum A Hard Day's Nigtht, dos Beatles, nos recebe. Trata-se de Eustachio Lima, 69, advogado aposentado, músico e um dos componentes do antigo grupo musical natalense Os Vândalos - banda cover dos Beatles que fez sucesso nos clubes da capital potiguar nos anos 60 e chegou ao fim em 1973. 

Na sua espaçosa garagem repousam um Jeep e uma lambreta vermelha. São meros coadjuvantes do ambiente. O que salta aos olhos é um pôster cinquentenário de um show dos garotos de Liverpool realizado em Detroit. "Um amigo meu viajou para os EUA e me trouxe de presente esse cartaz. É o original do show", afirma. 

Cartaz original do show dos Beatles na Chrysler Arena em Detroit, nos Estados Unidos. A peça estampa uma das paredes da garagem de Eustachio. Foto: Yuri Gomes/Caderno de Pauta

Flores sintéticas lotam os cômodos da casa: até no banheiro há. Uma sala com aproximadamente 25 metros quadrados, protegida do sol por grandes persianas, é o abrigo da San Miniato, estante onde Eustachio guarda parte de sua coleção de livros, CDs, filmes e artigos musicais. O nome é uma referência ao santo florentino que após ser decapitado pelos romanos, pegou sua própria cabeça e andou até o Monte Fiorentino. "Ouvi a história, achei foda e quis fazer aí uma espécie de Instituto San Miniato", explica, rindo. 

Elvis Presley, Frank Sinatra, Bob Dylan, Neil Young, Beatles, Rolling Stones, Chico, Caetano, Gil, Jobim, Edu Lobo e incontáveis outros ocupam as prateleiras do móvel que o músico considera o seu "maior e único bem". 

Eustachio Lima posa em frente à sua “San Miniato”. Lotada de Beatles, Elvis Presley, Beatles, Gil, Caetano, Chico, além de cinema e literatura, a estante é considerada por ele o seu maior e mais precioso bem. Foto: Augusto Ranier/Caderno de Pauta 

Ele vai em direção ao aparelho de som, coloca o CD do álbum Revolver, dos Beatles para tocar e se senta na sua poltrona pronto para despejar história. Mas antes, serve-se de licor italiano de morango. Também nos serve. "Fica bom com um gelinho", diz. 

CD do sétimo álbum dos Beatles, Revolver, escolha de Eustachio para a tarde. Taças e licores ao fundo. Foto: Yuri Gomes/Caderno de Pauta

"Isso é disco de rock, rapaz" 

Sobre o início de tudo, Eustachio fala sobre a SCBEU - Sociedade Cultural Brasil-Estados Unidos, a primeira escola de idiomas a funcionar em Natal no final da década de 50. A instituição era uma herança da ocupação norte-americana em terras potiguares durante a Segunda Guerra Mundial. Mais que uma simples escola de inglês, o local foi um marco da cultura americana na sociedade natalense. "Tudo lá era americano: os cachorros eram americanos, a música era americana. Para você ter uma ideia Robert Kennedy esteve por lá", explica Eustachio. 

Estudante do colégio nos anos 60, juntamente com seus dois irmãos Fon e Lóla Lima, teve lá o seu primeiro contato com a música americana. "No SCBEU tinha uma biblioteca e uma discoteca incríveis: havia discos de Jazz, de Blues e etc. Com 14 anos eu não sabia nem o que era aquilo, mas era alucinado: pegava aqueles discos e trazia para casa. Era B.B. King, Frank Sinatra, Stan Getz. Aquele pessoal todo que eu só fui descobrir depois quem era", conta, com a voz abafada pela canção "Love You To". 

O rock, no entanto, ainda não era conhecido pelos ouvidos do então jovem estudante. Eustachio relata a história do dia em que escutou Elvis pela primeira vez: "Gileno, um colega de classe do SCBEU, que mais tarde viria a fazer sucesso nacionalmente na dupla de Jovem Guarda Leno e Lílian, andava com uns compactos para cima e para baixo, e nos intervalos colocava a música para tocar. Era Elvis com a bixiga, todo mundo dançando, aquela coisa toda. E certo dia eu cheguei para ele e perguntei: 'Gileno, que música é essa?'. 'Isso é disco de rock, procure lá na cidade'". 

Foi correndo à loja procurar pelos discos de rock. Lá chegando, perguntou pelos discos e recebeu uma resposta negativa. Aquela nova palavra não havia chegado às lojas natalenses. Eustachio diz que no dia seguinte foi tirar satisfações com quem havia lhe indicado: "Gileno, porra, você não disse que era disco de rock?". O amigo retrucou e disse: "Não cara, era para procurar por disco de Elvis". Voltando à loja, o vendedor mostrou a discografia de Elvis ao entusiasmado rapaz de 15 anos. "Eu fiquei fascinado. Meu pai me dava dinheiro e eu ia logo comprar os discos. Fui comprando, comprando e chegou uma hora que eu tinha todos os discos de Elvis", lembra. 

Logo após o episódio musical, ele começou a fazer dublagem do cantor norte-americano. "Eu botava o cabelo para trás, aquele negócio todo... Até hoje eu ainda estalo os dedos como Elvis fazia", afirma, enquanto mostra seu estalar de dedos característico. Yellow Submarine ecoa pela sala. 

Eustachio, com 15 anos, cantando Elvis na escola SCBEU no início da década de 60. Encostado na parede, de camisa listrada, está Gileno, músico natalense que viria a ser tornar ídolo da Jovem Guarda, na dupla Leno e Lílian. Foto: Arquivo pessoal de Eustachio Lima

De alucinante a vândalo 

A primeira vez que escutou os Beatles foi graças a um amigo que estudava em São Paulo e trouxe um compacto da banda. Eustachio no primeiro momento rejeitou a música: "Eu disse para esse amigo: 'tira essa porcaria daí, rapaz'. Eu estava naquela onda de Elvis e ali era uns cabas com uma voz fanhosa, arretada... Can't buy me love [imitando a voz fanha]. Um negócio estranho. Não gostei. Aí depois eu enlouqueci pelos Beatles". 

Taça na mão. É a sua segunda dose da tarde. Mais duas pedrinhas de gelo e She Said She Said dá o tom da conversa. De pernas cruzadas, ele relembra o dia em que chegou em casa e viu o irmão tocando uma música do Paul McCartney no violão, junto de um amigo. "Eu fiquei olhando aquilo e pensei: 'vamos fazer uma banda!'. E assim formamos Os Alucinantes". Era um embrião da banda que estava por vir. Pouco depois, disse que ao escutar "você é um vândalo" em um filme de Elvis decidiu mudar o nome do grupo para Os Vândalos. 

Coincidências e vanguarda 

Tal como uma enciclopédia musical aberta, Eustachio começa a enumerar as coincidências entre os Beatles e os Vândalos. "John Lennon conheceu Paul [McCartney] em cima de um caminhão, fazendo show na quermesse. Começaram a tocar em igreja e a gente também. Tocamos na Igreja de São Pedro no Alecrim. John Lennon foi criado por uma tia chamada Mimi [Mary Elizabeth Stanley], nós tínhamos uma tia de nome Mini, com 'N'", diz, dando uma longa e característica risada. 

Ele atribui a sua banda um status de vanguarda na cena musical potiguar: "A gente tocava músicas muito antes delas chegarem por aqui. Por exemplo, começamos a tocar as canções de Sgt Pepper's Lonely Hearts Club Band um ano antes de chegar em Natal. Não era coisa pouca, não. A gente tocava Crosby, Stills, Nash & Young. Quem era que tocava isso aqui, cara?". Para tentar lembrar, ele canta um trecho de uma música do antigo supergrupo de folk

Esse ineditismo musical só foi possível pela boa condição financeira da família Lima: "A gente era de uma classe média bacana. Meu pai era do Banco do Brasil e vivíamos numa casa boa. Os meus irmãos viajavam para os Estados Unidos". Na bagagem, seus irmãos traziam discos que ainda não ocupavam as prateleiras natalenses. 

Os Vândalos, segundo Eustachio, foi o primeiro grupo de rock a tocar no Teatro Alberto Maranhão. Diz que tal feito só foi possível porque seu irmão, um dos componentes da banda, namorava a filha do curador do teatro. 

Woodstock Natalense e os vândalos alienados 

Já velhos conhecidos nos clubes de Natal, os Vândalos foram tocar no Festival Do Sol, em 1973, no estádio Juvenal Lamartine. Abriram o show com um repertório marcado por Led Zeppelin, Rolling Stones e outros nomes da década de 70. Os Novos Baianos fecharam aquele dia. "Para você ter uma ideia, esse festival foi considerado o Woodstock natalense", lembra. A ocasião também marcou o fim da banda. 

Os Vândalos abrindo o Festival do Sol no estádio Juvenal Lamartine, em 1973. Os três irmãos Lima, da esquerda para a direita: Lola, Fon e Eustachio. Foto: Arquivo pessoal de Eustachio Lima 

Tempos de ditadura: a música de protesto ganhava força no Brasil. A MPB tornava-se um popular instrumento de enfrentamento do regime militar. Sobre esse cenário, Eustachio remonta ao dia em que ele e sua banda foram vaiados durante um festival de música brasileira realizado no Palácio dos Esportes, no bairro de Petropólis: "Todo mundo só tocava música de protesto, aquela onda de Gil, Caetano, Chico e a gente tocando os Beatles. Quando começamos a tocar foi uma chuva de tomate e ovo podre para cima da gente. Nós éramos chamados de alienados". 

Bolachas e o fim 

A tarde cai. Luzes acesas. Cada detalhe da sala ganha ainda mais destaque. Bob Dylan e seu nobel de literatura viram o tema da conversa. "Bob Dylan trouxe o poema para a música popular. Ele influenciou John Lennon e Paul McCartney. Todo mundo só falava de amor, de yeah yeah yeah e Bob Dylan chegou com uma música popular, da realidade do povo, etc", diz. 

Levanta-se da poltrona, vai em direção à cozinha, prepara algo e nos convida à mesa. Apesar de simples, como qualquer lanchinho de fim de tarde, o zelo para com os detalhes se iguala ao de um banquete presidencial. Mesa forrada com toalha, castiçal com velas apagadas, taças, jogo americano, pratos e porcelanas, mais flores de plástico e uma miniatura de um guarda-chuva, esse último uma alusão ao musical Singin' in the Rain, segundo ele. 

Objeto protagonista de sua sala: um manequim violinista. Eustachio remonta a história: “Já tinha comprado o violino em Curitiba; é de verdade. Depois achei esse boneco para vender, sem os braços. Tive que ir todo dia posar com o violino para o cara fazer os braços, a mão e os dedos”. 

Já é noite na Candelária, zona sul de Natal: um manequim enfeita a sala de Eustachio. É a grande estrela, entre os incontáveis objetos de decoração da casa. (“Tem muita história”). Foto: Yuri Gomes/Caderno de Pauta 

Algumas bolachas depois, ele conta sobre o fim da banda. Ainda não havia tocado no assunto. A trajetória dos Vândalos chegou ao fim no ano em que os irmãos Lima precisavam prestar o vestibular. O dever de entrar na universidade podou o sonho de vandalismo. 

Ainda empolgado e risonho, ele emenda uma história na outra. Vez ou outra conta uma piada. Assim foi a tarde toda. O tempo é curto e a conversa se aproxima do fim. Sim, conversa, pois pouco antes Eustachio já havia batido o martelo: "Isso não é mais entrevista, virou uma conversa". Despede-se pedindo bis. Tem sede de papo. Conclui como quem quer resumir tudo em uma só frase: “foi do caralho”.

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