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Alecrim

*Por Tiago Silva

Praça do Relógio, Alecrim (Foto: Tiago Silva/Caderno de Pauta)

Cheguei, enfim. Preciso descansar porque meu corpo exige, mas não consigo. Preciso escrever, este é meu fim. Fui ao bairro do Alecrim e preciso escrever sobre isso, o quanto antes. Preciso escrever enquanto tudo ainda está fresco em minha alma. 

Eis um trecho do que vivi. Não tudo, porque isso é impossível, sempre algo se perde no meio do caminho. E mesmo antes de escrever tenho certeza que algo já se perdeu. Tenho pressa. Meus pés estão cansados e minha pele ainda está quente de sol. 

Vibra novembro da janela do ônibus. Sem entender o que acontece dentro de mim, passo a olhar o que acontece lá fora. Lá fora é dentro do mundo. Eu estava dentro de mim e estava fora do mundo. Tudo é caos, suor, concreto. O asfalto corre áspero e escamoso, tão réptil. Carregar o sol na cabeça é tão pesado, quanto será que ele pesa às 11h da manhã? Minha mãe dizia que se você carregar peso demais você abre o peito. Nunca entendi. Todos iriam ver meu coração então? Até meus sentimentos? Meu coração estaria vivo ou morto? Eu estaria vivo ou morto? Isso me assustava. Como este coração quase vivo bovino sobre uma lona branca. Quase vivo, porque brilha, quase pulsa, e sangra. Sangra como os rins e o fígado. O vendedor de peito grisalho expõe sua mercadoria que sangra com orgulho e espanta as moscas de suas vísceras mornas. 

Aquelas tripas brancas salgas como o mar morto não estão no meu pescoço mas me sufocam. Um cheiro de órgão, uma náusea, um afogamento. Deve ser a fome. Lâminas, gumes, corte preciso. A serra serra sem dó um membro amputado fora do corpo. E dói como cócegas em pé alheio. Suar no rosto é entender como é ter um rosto. Sob esta tenda, a primavera arde. Sim, é primavera. Cajus e abacaxis perfumados seduzem quem passa, enquanto o tempo absorve o presente. 

Da barbearia dá para ver todo movimento da feira. O barbeiro ignora o caos, olha para o nada, em operação delicada corta com tesoura enorme pelos do nariz. Sequer olha-se nos espelhos sujos. Pombos gordos de peito quente bicam a sarjeta, famintos. Mal sabem que ali perto alguns frangos estão mortos e frios e roxos, puro arcabouço de intimidade violada. 

O brilho de joias falsas sob este sol é tão verdadeiro! Tão perfeita e verdadeira a falsa beleza daqueles manequins prateados, descartáveis como um universo sucede outro. 

Ainda tomado por um estremecimento, um menino olha com paixão um pequeno cavalo laranja de plástico que galopa em torno de si. Seu viver agora é aquele cavalo. O grande da vida está perto e cresce. Ele tem uma certeza de anjo pesado na terra – quer o cavalo. Talvez fosse aquele dia, talvez fosse aquele sol, mas sua mãe estava apressada e não iria comprar o cavalo. 

- Mãe, eu quero!, chora o menino. 

- Pare de chorar! Ou ninguém vai gostar mais de você, nem eu mesma! 

- Não, mamãaaae!, ele exclama. 

Mas sua mãe estava apressada, e o menino ficou em estilhaços. 

Na Praça do Relógio, o tempo de multiplica com esplendor, se esconde na finura da areia de uma ampulheta. Tudo nela ocorre ao mesmo tempo: arte, comércio, prostituição. Homens velhos palitam os dentes mesmo sem ter comigo. Riem da vida e absorvem todo o frescor que uma alegria pode proporcionar. Alguns vendem relógios dourados, e isso é tão importante. Aqueles senhores conversam e vendem relógios na Praça, um prazer glorioso. 

Tomado de religiosa paz, um senhor ouve seu radinho de pilha e compartilha seu êxtase com os amigos. 

- Isso que é música!, diz seu coração. 

Alguém diz que o céu é imperfeito, e um morador de rua guarda sua flauta verde na bolsa. 

Encontrei um pequeno buraco negro, é onde a paz começa. No escuro da morte, o que cresce não se vê. Morrer é o fim ou é o início? Quero a eternidade destas flores de plástico, ah como quero. No cemitério às 2h da tarde o granito é quente. Rosinha Palatnik, oh moça judia, te deixaram rosas escoradas com uma pedra sobre tua lápide e velas para iluminar teu caminho para a eternidade. Espero que nesse eterno frio teu coração esteja quente. 

Este silêncio, esta sede... só o sol grita. Será que estou aqui? Sei que escrevo. Portanto, existo. Ainda bem. Escrevi algo sobre o Alecrim e sem aviso acabei me escrevendo.

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