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Quando é necessário se atentar aos consensos

Por Henrique Mendes




Não é de opinião que se constrói análise. Deixar de levar isso em conta não é só ignorância, é também desonestidade.

Nas últimas eleições presidenciais francesas, uma discussão suscitada por comentaristas políticos liberais do país foi a de que as críticas que Melenchón, candidato de esquerda, fazia ao então candidato centrista Macrón se assemelhavam muito as que estavam sendo feitas pela direitista Marine Le Penn: para aqueles analistas, ambos usavam de discurso extremista, salpicado de ódio, para atacar o adversário comum. O que subsidiava tais afirmações por parte dos comentaristas é uma teoria da ciência política chamada Teoria da Ferradura. A mesma teoria vinha entrando na baila dos comentários políticos em veículos liberais desde as prévias americanas, quando o democrata Bernie Sanders foi massivamente comparado a Trump, o que teria tido influência direta na escolha de Hillary para disputar o pleito, por ser mais moderada.

Pois bem, no caso do Brasil, podemos dizer que, na mesma medida, este também foi um argumento que pautou o comentário político da mídia corporativa nas últimas eleições: de um lado o agora eleito, com seu rosário de absurdos proferidos assumiu a bandeira de extremista de direita e foi sob ela que angariou uma horda de pessoas orgulhosamente declaradas racistas, homofóbicas e xenofóbicas – palavras correntes na ordem do dia do fascismo; de outro lado, primeiro Boulos e Vera Lúcia, ele do movimento de ocupação, ela mulher negra – caricatos extremistas de esquerda para a grande mídia de sempre – , e, logo em seguida o PT na figura de Lula e Fernando Haddad. Quando do acirramento da polarização entre as campanhas no segundo turno, as instituições do judiciário também incorporaram o argumento da existência de dois extremos igualmente abomináveis. 

O que essa argumentação quase generalizada não deixou claro – afinal, tinham pessoas morrendo de um lado só – a Teoria da Ferradura parece prometer explicar. Vamos, então, a ela.

É bom que se diga, em primeiro lugar, que esta sequer é uma revisão bibliográfica desta teoria, muito menos é uma análise pretensamente neutra de sua aplicação. Nem há como ser, já que quem vem reivindicando sua atestabilidade em contextos atuais são pensadores ligados a institutos liberais, neoliberais ou conservadores de formação de pensamento em políticas públicas, os chamados think thanks. Trata-se, portanto, de uma clara disputa de narrativas, disputa por hegemonia discursiva. Acontece que existem formulações muito mais consolidadas dentro da ciência política que permitem contrapor radicalmente a ideia principal da Teoria da Ferradura de que os dois extremos – direito e esquerdo – do espectro político “se tocam”, ao possuírem mais semelhanças do que admitem seus representantes.

Há pelo menos três autores diferentes a quem se atribui a formulação principal da Horsehoe Theory, mas a mais comumente reivindicada é a do francês Jean-Pierre Faye, autor de O Século das Ideologias (Ágora, 2002) onde estaria descrito um esquema segundo o qual a intolerância existente dos dois lados estaria expressa em camadas formadoras do todo comunista, bem como do todo fascista. Neste esquema, o extremismo de direita é ideologicamente oriundo por exemplo do corporativismo, que no extremismo de esquerda encontraria seu exato oposto no sindicalismo. Até aqui não parece tão refutável se pensarmos que o aparelhamento partidário esquerdista nos sindicatos é responsável pelo entrave de inúmeras pautas dos trabalhadores. Afora os grandes patrimônios acumulados por estas entidades, tal e qual uma empresa multinacional. Pronto, está feita a crítica ao sindicalismo do lugar de fala de quem já militou nestes recintos e fez dura oposição a suas direções burocratizadas. A partir daí o que a Teoria da Ferradura revela é uma completa inaplicabilidade, principalmente se pensarmos no contexto brasileiro.

Obviamente que o xeque-mate dessa discussão parece estar no dado histórico incontestável que é a Segunda Guerra Mundial e os absurdos cometidos pelos famosos tiranos Hitler e Stálin. Isso em se tratando de uma discussão pelo Twitter com um bolsominion, é claro, porque sendo intelectualmente honesto é totalmente irrazoável dizer que Stálin é o comunismo. Ao contrário do que ocorreu com as expêriencias do fascismo europeu, de Hitler, Mussolini, Franco e Salazar – em que a eliminação dos opositores estava na raiz mesma do implemento da ideologia –, no comunismo instalado com a União Soviética, houve a experiência primeira de Lenin, que nada tinha de eliminador de coisa alguma, a não ser a exploração e a miséria a que estavam sujeitos os camponeses russos. Ademais, com a chegada de Stálin ao poder, suas práticas encontraram dura oposição de pessoas igualmente comunistas, emblematicamente na figura de Trotsky. 

Dizer que Stálin é um genocida é um consenso, as listas diárias com ordens de execução de centenas de pessoas foram amplamente publicitadas após a sua morte. Dizer que o comunismo é Stálin, já não é um consenso, muito pelo contrário. A luta de Trotsky e das organizações que o reivindicam como manutenção do legado de Lenin e da preservação do ideário comunista é legítima e consensual. Então, neste caso, podemos dizer que a Ferradura não é tão válida.

Mas vamos chegar mesmo no que interessa, que é esse Brasil de 2018 tão marcado pela polarização, como, aliás, sempre foi, já que falamos de uma das sociedades mais desiguais do mundo. A Teoria da Ferradura contrapõe como estando no mesmo nível dos dois extremos o fundamentalismo e o feminismo: ora, se formos pensar nestes termos seria mais adequado contrapor feminismo ao machismo já que o argumento corrente é de que as feministas querem o lugar privilegiado dos homens para si – o que não é verdade, mas provaria melhor a tese talvez. O fundamentalismo, cujas raízes via de regra são religiosas, deveria ser contraposto, portanto, com a liberdade religiosa, ou, já que é pra provar radicalismos com bastante preconceito, o candomblecismo. 

Mas não é isso que Ferradura traz, o que ela traz são análises rasas de contextos específicos para afirmar o que convém: em todo movimento há radicalismos, e com o feminismo não é diferente. E isso não necessariamente é negativo. As feministas foram radicais na sororidade, por exemplo, agindo em defesa de toda e qualquer mulher subjugada por um homem, indiferentemente do contexto motivador ou do posicionamento político da mulher envolvida. Isso criou um movimento que vem revolucionando a condição feminina nas sociedades ocidentais. 

O esquema de Faye emparelha ainda o ambientalismo da esquerda com o conservadorismo. A interrogação que fica, principalmente para um pensador tão alinhado com o pensamento do chamado capitalismo pós-industrial, é porque que o exato oposto de ambientalismo proposto não é o industrialismo ou o ruralismo, que claramente são os reais opositores e razão de existir das pautas ambientalistas? A resposta pode estar no fato de que uma análise tão eurocêntrica como a do filósofo francês só leva em conta o que está ao alcance dos olhos da Europa, que é basicamente a atuação do GreenPeace. Uma análise simplista das táticas de pirataria empreendidos pelo grupo na defesa da biodiversidade marinha é suficiente para taxá-los de extremistas. A correlação de forças, que poderia ser justificada na confusa formulação de tolerância da intolerância que Faye traz, é igualmente ignorada por ele próprio. 

No caso do Brasil, nem é preciso dizer que falar de lados opostos na questão ambiental sem falar no genocídio dos povos da floresta é no mínimo ingênuo, no máximo, genocida e fascista.

Mas vá lá, pode ser que ele nunca tenha estado no Brasil ou tenha lido nada sobre a América Latina. Justificaria a visão estreita. O problema é que tem gente querendo analisar o Brasil a luz de uma teoria dessas. Teoria que, é bom que se diga, não serve sequer para explicar os contextos mais ou menos homogêneos dos países do Norte global. O professor de Teoria Política da Kingdom University Simon Choat, autor de Marx Through Post-Structuralism, detrata a formulação da Teoria da Ferradura em sua origem: ao contrário do que Faye procura afirmar em seu livro, os fins e não os meios da extrema-esquerda e da extrema-direita é que poderiam ser minimamente comparáveis no sentido de que ambos rejeitam o globalismo econômico em preferência a nacionalização da economia e da produção (o que, aliás, nem é o caso de Bolsonaro, para vermos como o Brasil não é para iniciantes). Mesmo assim, Chot ressalta, que as elites globais a que Trump se refere em seus discursos não são, definitivamente, as mesmas que a esquerda critica, já que esta seria o próprio Trump. A título de exemplo, não é nem de longe a mesma elite que Boulos provoca quando desafia o mercado financeiro. E os fins dos dois espectros não são apenas e necessariamente ou o comunismo ou o fascismo, há pautas específicas nas quais atuam. 

Há uma particularidade no caso da Europa atual que são as manifestações de antissemitismo que tem surgido vindas de políticos tanto de esquerda quanto de direita nos últimos tempos, sobretudo com o acirramento do conflito entre Israel e Palestina. Este fator vem servindo como aporte principal de uma argumentação que, ainda baseada na Ferradura, equipara o discurso nacionalista socialista com o discurso separatista de direita, que é xenófobo ou racista. O conflito é uma crise humanitária grave por que passa o mundo no momento e os excessos de parte a parte não podem passar desapercebido. Só não se podem admitir oportunismos. 

Só que tem gente engolindo fácil essa que é uma grande fraude discursiva. A subserviência cega ao que vem de fora Jessé Souza explica em sua Elite do Atraso, a desonestidade intelectual também. Não é por desaviso.

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