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Não me esqueças

Por Tiago Silva de Oliveira

"Mistério", de Odilon Redon
Acordou de súbito com um barulho surdo e úmido. Permaneceu com os olhos cerrados, sob o alerta do medo e o peso do sono, procurando pistas daquela experiência ou para se localizar no mundo, sob aquela fina manhã antiga. Tudo no seu quarto e no seu rosto é antigo, guarda bem o tempo. Já não dorme por cansaço. O sono, esta imitação da beleza, repouso mudo ineficaz, é fuga, adiantamento da morte. Assim, a cada longa noite, madrugada vazia ou tarde de gritaria no vizinho, o sono lhe rouba a vida. E gosta. Quando acorda, tem mais certeza da proximidade do fim. Essa noite teve o sono picotado pelos cupins. Ah, esses insetos imobiliários, se comerem a escritura da minha casa, transfiro-a para seus nomes. Acordou várias vezes na noite com essas palavras na boca. Assiste impassível de sua cama aos cupins fervendo no telhado devorarem os caibros. Aquilo era novidade. Sua casa estava com cupins. Finalmente tinha algo para comentar com sua vizinha enxerida. Odiava quando ela vinha bater à sua porta para conversar e fazer perguntas que não sabia responder. Perguntava se havia assistido à novela, por que não tinha filhos ou marido, por que não decorava a casa... Mas agora ela tinha algo para falar! Sentiu um pouco de segurança. Palpitou estranho o coração no peito, palpitou. 

Palpitou estranho. Sentiu uma vontade ardente de queimar seus mortos, deixar o vento, coveiro, recolher as cinzas. Ouviu aqueles cupins castanhos e brilhantes. A ambição lhe inundou com violência. Olhou para o velho piso de tacos castanhos. Há muito, muito tempo eles eram castanhos e brilhantes como aqueles cupins. Castanho-claro como o mel. Uniformes. Admirava tanto aquele piso. Foi a primeira coisa que fez quando comprou a casa - colocou os tacos. Riu de si mesma ao lembrar que um dia sonhou ter uma casa com piso de tacos. Mas hoje, ainda deitada na cama, vê os pedaços de madeira de descolarem do chão e sente um pouco de pena. 

Como uma criança que segura um doce para não acabar logo, ela bebe seu café. Lentamente. Não por estar quente, ele já estava morno, quase frio, mas para ter certeza que de fato a manhã tinha começado. Lavou-se e arrumou-se como em todas as manhãs. Pôs a mesa e dois pratos vazios. O porquê, não sabia. Nem estava com fome. Uma xícara de café lhe bastava. De novo aquela palpitação no coração. Era chegada a hora, não podia esperar mais ou enrolar tomando café. Ele esfriou. Sentia agora um vigor sensual, vibrante, quase erótico. Iria iniciar mais um trabalho. Um quadro. Há tempos não lhe faziam encomendas e estava em carne viva. 

Tudo ocorreu na noite anterior. Estava escovando os cabelos, preparando-se para dormir ou fugindo da tormenta da vida, quando bateram-lhe à porta. Tomou um susto. Nunca recebia visitas e sua vizinha nunca bateria à sua porta a essas horas. Espiou pelas frestas da janela e deu de cara com o busto de um mulher esbaforida que trazia flores. Me desculpe, senhora, bater à sua porta tão tarde, mas preciso de você, disse. 

Era uma mulher de olhos pequenos e rápidos, com certeza mais velha que ela, com muitas joias e um pronunciado bico de viúva. Preciso de você, preciso que pinte um quadro para mim com urgência, viajo daqui a dois dias e quero dar de presente. E entregou-lhe um pano vermelho com um volume equivalente a duas mãos fechadas. São todas suas, minha filha. Todas. Só quero que pinte um quadro para mim. 

Ainda sem entender, pegou as jóias e as flores e viu a porta fechar atrás de si. Nunca vira tantas jóias. O brilho metálico não a atraia muito. Mas eram muito bonitas, não se podia negar. E valiosas. Poderia trocar todo o seu chão de tacos se quisesse e muito mais, ah como poderia. Colocou o peso das jóias sobre a mesa da cozinha e examinou então as flores. Também eram muito bonitas, não se podia negar. Como eram. Nunca vira aquele tipo de flor. Pinte estas não-me-esqueças, são para meu amor. Não-me-esqueças, não-me-esqueças. São um belo presente, pensou. Mas ela queria um quadro. Um quadro com aquelas flores tão bonitas. Queria capturar o trânsito da vida e eternizar aquele auge de beleza daquelas flores. E ela era a responsável. Tremia diante de tanta responsabilidade. Já havia pintado vários quadros, já lhe haviam feito várias encomendas. Por que estava assim? Devia ter me fingido de morta. Estas flores não podem ser pintadas, elas são o amor e são finitas. “São para o meu amor”. Queria gritar mas era muito tarde. Esta é uma encomenda muito especial, única entre milhões. 

Não entendia mais seus pensamentos. Começou a engolir letras, depois palavras, as mais curtas. Sua mente era quase matemática. Ouviu então os sons do corpo. Seu coração dizia que estava com medo. Quase podia ouvir o pulsar de sua enorme veia saltada na têmpora esquerda. O ar esquentava, parecia que havia ganho dois graus. São para o meu amor. Como alguém que acabara de comer, ele cheirava à carne. Aquele cheiro doce e repugnante de carne ainda crua. Talvez não fosse a de um animal ou de uma pessoa, mas a sua. Era a sua carne que fedia. Abraçara um morto e não sabia. Amou-o como a morte ama a vida. Acho que mais. Talvez como o cheiro pálido de todas as manhãs pertence às manhãs. 

Ele tinha vindo de tão longe e amava meus quadros. Via o que não era. Mentia, mentia! Via beleza em meus quadros e em mim. Ele fazia tudo ser. Detestava. Por que não era honesto?! Ele só me via com os olhos? Pare, seus quadros são lindos. Não são! Eles cheiram a ovo podre! Mas ele insistia na beleza, e eu o admirava. 

Precisava experimentar viver de novo. Ouviu o silêncio do ressonar de seus ossos queimando e se assustou. Imaginara que o silêncio era inabitado. A manhã avançava e ela já começava a suar. Nada tinha acontecido. Não tinha coragem. Tudo dependia dela? Dependia. Mas tudo estava ainda morto e opaco, como antes da origem da vida. Precisava de água, luz e um pouco de perfeição - fez-se o mundo? Como ela estava um pouco adiantada nessa gênese, e já existia óleo, textura e cor, podia começar preparando suas tintas. Exigência pura, castigo. Esta cor é impossível. Nem sei se é. Sou um mamífero selvagem que se guia pelo cheiro. Começo a caçar. Ah, como é difícil. Não tenho mais disposição para correr. Só por medo. Esta cor é muito difícil, já disse. Não é azul, é a perfeição. Minha paleta sente prazer com esta cor. Mas eu procuro, não desisto da alquimia. Peguei elementos que não nada e os transformei. Sou uma bruxa de feitiços e fetiches. 

Está na iminência de um horror. Um horror tão feio quanto o grito de um sacrifício. Perdeu o quadro? Não, nem começou! Desespero. Não consegue achar a cor. Sente sede. Uma sede petrificada, muito seca e intensa. Seca como a aspereza da vida é seca. Quase uma fome. Bebeu inteira uma xícara de café pela manhã e sofre. Bebeu aquele café para manter a vigilância. Neste momento, sente-se quebrada, sem graça. 

Deu água na boca ver aqueles limões tão ácidos e verdes na geladeira. Verdes e brilhantes, quase oleosos. Na prateleira mais alta da geladeira. Supremos. Como o sol que arde no céu do meio-dia. Acho que têm até uma aura. Um faz companhia ao outro, mas são tão frágeis. Repousam esféricos e pesados como se fossem bolas de vidro geladas. 

Pegou dois e perturbou uma paz. Dois me são suficientes. Odeio facas, objetos cortantes no geral.Talvez pois tenha medo de sangrar até a morte .O medo da morte é antigo, mas peguei uma faca, peguei! Uma faca cheia de dentes, daquelas pequenas que usamos no café da manhã. Dessas não tenho medo, ou tenho pouco. Daquelas grandes, enormes, que usam nos açougues, tenho medo. Não me arrisco a pegá-las. Sangro por antecipação. Imagino meus órgãos fora do meu corpo e minha alma também, assistindo a tudo. Minha alma, pois estaria morta. 

Queria ser minha alma. Não é porque ela é minha que ela sou eu. Queria ser ela para sangrar com verdade. Peguei a faca, enfim, enfim. Sei cortar limões, não sou criança. Queria tirar toda a casca em espiral, mas é difícil. Só me resta a cruz. 

Seu cheiro é tão violento que dói nos ouvidos. Me toma. Engole minhas mãos, meu braço, meu tronco. Engole a casa um cheiro cítrico. Não queria ser tão má, mas preciso triturar bolas de vidro no liquidificador. Se fizer alguma diferença, bato com água benta. Tomei tudo, só um copo. 

Minhas mãos estão estranhas, muito grudentas e verdes. Engano, não estão verdes. É que confundi o cheiro com a cor. Perdão, por favor. Preciso acelerar porque já é tarde ou perderei meu ônibus, tenho que comprar mais tintas. Então vou transferir tudo da minha cozinha para um ônibus quente como algo que vive. Eu mesma estou pingando. Não tem para onde fugir do sol. Mas daqui para frente o ônibus seguirá em linha reta e nesta posição escapo um pouco dele, é o máximo que consegui. Tenho um livro na bolsa, é poesia das boas. 

O tronco do meu dedo indicador e do médio, perto da articulação, está vermelho, na mão direita. Não é de pintar. Sinto o vermelho na minha mão. Passaram-se horas depois que cheguei, dormi um pouco e já acordei. Meus dedos mudaram de cor. Estão um pouco amarronzados. Duas manchas. Queimei minha mão com ácido de bolas de vidro. 

Tudo me distrai, Deus, me salva! Pela manhã, após longo jejum noturno, sinto-me suspensa. Acordo assim, às vezes. Começa pelo meu estômago, o preenchimento vazio. O oco do mundo é sentido primeiro nessa região. Ela tateia. Mesmo bebendo água continuo vazia. Uma força muito calma pressiona meu corpo. Tão calma e leve. Como o repouso das flores, chananas boiando na água. Na água ardente do meu estômago. Esta sensação não passa!Queria que a primavera chegasse. 

Não consigo me concentrar no quadro. São estas flores, só pode ser. Rompi um casulo de horrenda beleza e não consigo fechá-lo. Será que ela aceita outra coisa, digo, outra pintura? Tem que aceitar. Fui desonesta com minha cliente. Acho que fui desonesta com todos e comigo mesma. Não consigo pintar por encomenda, por que ainda insisto? Escolhi viver, por isso fico exposta ao perigo da morte sempre. Acho que me revelaram o segredo, espero que não seja tarde. 

Extraio crônicas secreções inaudíveis de sépia do meu coração, meu pincel se move, parece que expele tinta de lula. Tanta neblina...uma caverna úmida diante de mim começa a surgir, rasgada, com uma fenda. Tão silenciosa que começo a sentir paz. Estou sozinha diante de uma caverna. Algo lá dentro me chama. À meia luz algo respira e vive. Algo imenso. Não consigo ver ainda. Estou suando de novo, minhas pupilas estão dilatadas. É selvagem. 

Por entre estalactites e estalagmites, relincha um cavalo castanho e gordo, muito escovado, brilhante, e rompe a noite da caverna e minha tela.

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