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Momento do Silêncio

Por Ella Torres
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Guerra Lunar por Isidro Chiculo Sanene. 

Foi num dia como esse que perdemos a guerra.

A água empoçada no chão refletia o grafite do céu, como os escudos do exército, espelhavam a dor nos olhos do último dos rebeldes.

Muita gente que eu conhecia morreu nesta época.

Eu era criança e comecei a perguntar pelo meu avô, que parara de almoçar conosco. Depois pela minha tia Moly, que era professora universitária e cozinhava uma bela torta de frutas no Natal. Perguntei pelo meu primo Tobias, o orgulho da família, que não me chamava mais para andar a cavalo – mas quanto mais gente ia desaparecendo, entre os vizinhos e amigos, e quanto mais eu via minha mãe chorar pelas ideias veementes de meu pai, mais eu parava de fazer perguntas. Porque, criança ou não, uma hora você se dá conta do que de fato é uma guerra e a qual lado você pertence.

Orgulho-me em dizer que, numa manhã sem esperança de março, nasci no lado dos derrotados, como um presságio de glória – ou como um desgraçado que poderia ser morto muito em breve.

Mas os anos se passaram e o fato de terem nos deixado vivos, a meu pai, minha mãe e a mim, talvez tenha feito com que relembrassem o episódio e acreditassem na primeira opção. Porque o homem incumbido da tarefa olhou nos olhos dos dois, disse que a guerra acabou e que era melhor se renderem, pois não gostava de matar na sexta-feira.

E, ainda naquele mesmo dia chuvoso, intrépido e triste de novembro, quando minha mãe me fez acender uma vela para cada pessoa que sumiu nos anos anteriores, eu ainda podia ver no luto dos olhos dela que não havíamos nos entregado de verdade.

– Ninguém rouba de você o pensamento. – Sussurrou ela devagar, como que para eu não me esquecesse.

E não me esqueci.

Nunca. Nem quando ganhei pelos no rosto e botas enormes nos pés, ou quando foi instituído que a moralidade era a conduta, a Igreja era a conduta, a ordem era a conduta. Eu sempre sussurrei em silêncio, enquanto hasteavam a bandeira do novo regime e pediam um minuto pelas vidas perdidas dos soldados. Eu nunca deixei de sussurrar “ninguém rouba de mim meu pensamento”.

E era para ser segredo, um segredo mesmo fácil de guardar. Porque em mim estava esculpido o estigma da família Langue, o que restou de uma família destruída pelo governo, odiada por todos e endeusada nos livros clandestinos dos novos intelectuais.

Eu não tinha amigos, mas tinha acesso a esses livros. Há um ano sei o que discutem em sigilo, enfiados em porões, os novos pensadores. Isso é possível porque, dentro da sala do alto conselho, sob um batom rubi e um chapéu negro de veludo, lindos olhos cinzas faziam vista grossa.

O nome dela é Harmony. E de harmonia só tem o rosto, que parece ter saído das telas de um cinema dos anos vinte. Por dentro, era selvagem e absolutamente doida. Com um par de pernas compridas, enganava o próprio Regente em pessoa e na sequência arquitetava o dia em que o mataria com uma adaga enfiada no abdômen e o sorriso voltaria aos rostos de todos.

Foi com ela que eu soube o que é pecado.

Nessa nova era, mesmo os dicionários possuem censura... e a essa omissão é que eu atribuo a significância do pecado.

O pecado do desconhecimento. Da repressão.

Bastou uma noite para que Harmony me provasse que o imoral era nossa morada. Em como todos estavam tristes e desamparados, vivendo sob a mira dos fuzis do governo, com medo de respirar. E ali, a gente, ofegantes, histéricos, sem pensar em se casar, mas não querendo que aquilo tivesse um fim, com o risco de termos as testas atravessadas pelas balas do regime, há quem ache mesmo que iríamos nos calar?

– Eu gosto é do barulho – ela dizia. E no dia seguinte me ajudava a traficar os livros e marcar as reuniões. Começamos com cinco e, em um ano, já éramos tantos com as mãos esticadas para a bandeira e sussurrando que ninguém nos roubaria o pensamento que passamos a precisar de um líder.

Aquele sentimento precisava ser liderado.

E um magérrimo professor, comunista, com óculos circulares, chamou-me de soslaio e disse que precisávamos estudar o que deu errado no passado, que era incabível que houvesse outro líder senão eu: a semente que germinou no cemitério da resistência. O último Langue, sensato, vivo, saudável e capaz de liderar almas enferrujadas. E antes que eu lhe desse minha resposta, Harmony, com suas curvas de Vênus e os cabelos oxigenados, apareceu bem a tempo de pôr os lábios próximos do ouvido do homem e dizer que, se fôssemos traídos, ela sabia exatamente o que faria com as tripas depois de arrancá-las.

O professor deu um salto de indignação, jurou lealdade, afirmou que a única capaz de ser acusada de traição por parte do regime era a espiã que lhe ameaçava agora. Mas eu entendi onde Harmony queria chegar.

– Professor, ninguém lamenta mais a derrota dos rebeldes do que meu velho pai. Porque ele estava lá quando fomos traídos, quando na madrugada, antes do ato, entregaram nossa localização e planos. Eu digo “nossa”, porque não fujo da minha origem. Quer estudar as minúcias dos erros da guerra civil anterior? Tem total liberdade, mas se quer mesmo nos ajudar a ganhar esta, certifique-se que não seremos delatados. – Dito isso, dei as costas e saí com Harmony dali.

Exalto esse episódio por ser fundamental. Porque por debaixo daqueles óculos redondos, o professor tinha mais vivência que todos os outros ditos intelectuais, e mais contatos também. Se alguém fosse nos trair e repetir a crueldade do passado, então quem saberia me dizer era esse tal professor.

É claro que ainda assim segui seu conselho inicial, eu estudava a guerra passada e a mudança no cenário. O regente, que antes era forte e viril, agora tinha os ossos e a pele castigados pelo tempo, mas, quanto ao cérebro temeroso e vil, temo que tenha engrandecido a agilidade.

Os dias se passavam e riscávamos o calendário. Ficava cada vez mais difícil manter as reuniões em sigilo, porque nas ruas já haviam rumores sobre uma nova investida dos rebeldes.

Harmony não acreditava nas pessoas, mas no medo delas. Dizia que, apesar da insatisfação, habituaram-se a essa realidade de repressão e sentiam pavor em viver sem ela. Sua fé definitivamente não era na humanidade, até porque ninguém com menos de trinta anos sabia o que era isso.

– Ainda insisto que adiantemos a data... – murmurava.

– Meu bem, esse dia que você está sugerindo é suicídio.

– É suicídio esperar mais, eles já desconfiam…

– Então você sugere que matemos o regente no aniversário do novo regime?! É o dia em que toda a guarnição do Estado estará na rua! Terão milhares de pessoas fazendo falsas homenagens por aí, vamos pôr em perigo inocentes…

Ela pôs as mãos de um lado e de outro no meu rosto.

– Arthur, me escute, ninguém vai morrer. A única pessoa que vai morrer é o regente. E nós vamos matá-lo.

– Sozinhos?

– Sozinhos.

– E o que fazemos com o plano? – Apontei para o calendário riscado.

– Seguimos com ele. Avançamos no dia e hora marcada. Três dias depois da festa. Mas... – e reduziu o tom de voz – quando nossa equipe alcançar o palácio, o regente já vai estar morto e, quando alcançarmos a janela central, nós queimaremos essa maldita bandeira…

– E como saberei a hora de matá-lo?

– Porque meu bem, não vamos fazer barulho e eu vou pôr a boca em você.

Ela com aquele olhar neurótico e com uma proposta dessas na ponta da língua me fez pensar que eu aceitaria facilmente matar o regente todos os dias.

E aceitei. Aceitei seguir o plano de Harmony e passamos a madrugada discutindo-o, esquematizando como adentraríamos no palácio e o que faríamos durante os três dias seguintes ao assassinato. Concordamos que precisávamos confiar em alguém. Alguém do conselho rebelde, alguém que temesse por suas tripas tanto quanto temia pelo futuro do Estado.

Esse alguém só podia ser o professor. Foi por isso que contamos a ele nosso plano, que iniciaria na manhã seguinte, quando Harmony modificasse o cardápio do líder com gotículas de arruda composta, o suficiente para deixá-lo indisposto em uma semana, e culminaria justamente no dia da festa do governo.

– Se é capaz de deixá-lo doente então é capaz de matá-lo de vez! – Alterou-se o professor.

– E ser morta na sequência? Acha que nunca pensei nisso? Que nunca senti nojo do meu próprio corpo enquanto analisava o poder da guarnição daquele monstro e não tinha outra escolha a não ser aceitar fazer o que faço? Acha que como filha de um capitão traio o regime por birra professor?

O professor afrouxou o colarinho angustiado.

– Não quis dizer isso, madame…

– Se eu pudesse, já teria cortado…

– Calma – e pus as mãos envolta do corpo dela, a dor de Harmony mesclava-se com sensações ainda piores. – Nós temos um plano professor. Só precisamos da sua ajuda para comandar os rebeldes enquanto estivermos no palácio.

– Mas não sou soldado... eu sou o sujeito que pensa, não o que atira.

– Vai precisar se passar por mim – informei – e ser os dois.

Expliquei, então, ao professor como ele agiria quando o terceiro dia após o último aniversário do novo regime rompesse no Leste. Ele diria a todos que eu, Arthur Langue, havia saído horas antes com Harmony para seguir nosso plano e adentrar no palácio com antecedência, onde me posicionaria no único ponto capaz de acertar a cabeça do regente com um tiro quando este fosse à janela central, localizada em seu domicílio. Minha garota já me informou que tal localização é de difícil acesso e isso justificaria minha saída antecipada.

É claro que o regente já estaria se contorcendo nas labaredas do inferno há três dias, com a desculpa de estar repousando em seu quarto por conta de uma misteriosa febre. Como Harmony já havia me dito que o líder detestava médicos, isso agraciava ainda mais os planos.

A loira seria capaz de circular pelo palácio e me fornecer comida, sob o disfarce de uma serviçal, e a mim cabia a tarefa de me passar pelo regente durante setenta e duas horas em seu aposento. No quarto dia, quando nosso plano inicial fosse executado e os soldados saíssem para conter a revolta da população, Harmony entraria na sala proibida, onde é alojada a rádio do governo, e teria exatos cinco minutos para anunciar a todos a queda do novo regime. Eu sairia até a janela central e queimaria a então vigente bandeira do terror. Quando arrombassem a porta do quarto, o cadáver do antigo ditador estaria deitado sobre a cama segurando a mensagem “A guerra acabou”.

E revisei aquilo centenas de vezes, detalhe por detalhe, e parecia tudo tão perfeito em minha mente que soava como se já tivesse acontecido.

Mas, no sétimo dia, quando o líder se adoentou a ponto de não conseguir comparecer às tradicionais cerimônias da festa mais importante do ano, este se retirou para o seu aposento, na esperança de estar melhor à noite, no baile em sua homenagem. Tal como supúnhamos, chamou a Harmony para lhe fazer companhia.

Não fora nem um pouco fácil para mim, o último Langue, no dia do aniversário do novo regime, me passar por técnico de hidromecânica e adentrar no palácio, quem dirá no quarto do regente, mas, quando a hora finalmente chegou e precisei ficar estático sob os colchões de pena de cisne, senti um calafrio na espinha.

Algo não estava certo.

Lá fora, ardiam em música e vivas a população de atores do nosso estado, fingindo serem gratos por viverem em uma ditadura. Ao meio-dia, os soldados desfilariam e se posicionariam em frente à janela central, onde o regente apareceria e acenaria feito um monarca. Isso era dali a dez minutos. Quando o líder voltasse à cama nós o mataríamos. Porque matá-lo diante de todos acabaria por culminar na nossa morte também. E se isso dependesse apenas de mim, já estaria feito, mas jamais ousaria perder Harmony.

A loira, por sua vez, acalmava o líder com frases gentis e eu sabia que ele estava sentado sobre o colchão. Prendi a respiração. Os segundos se rastejavam torturantes e o cômodo foi cada vez mais adentrando em um silêncio profundo. O som que ouvia provinham apenas do exterior do palácio, oriundos da praça. Era como se Harmony houvesse se esquecido de dar o sinal.

Era isso.

O sinal.

Eu revisei o plano inteiro, detalhe por detalhe, menos em como seria esse sinal. O que ela quis dizer com pôr a boca em mim?

Comecei a sufocar em uma crise de ansiedade e ficou ainda mais impossível conter o barulho da respiração.

Agora chegara a hora. Os dez minutos se passaram e eu não via os solados do regente sobre o assoalho. Harmony não emitia som algum e lá fora a população clamava pelo nome do ditador.

Mais cinco minutos e tudo permanecia igual, mais cedo ou mais tarde alguém bateria à porta.

Angustiado, incapaz de me manter imóvel, rolei para o exterior da cama, sobre o piso e me levantei para ver o acontecia.

O regente encarava Harmony, parecendo exausto e ela, com uma pistola apontada levemente para seu abdômen, sussurrou:

– Um senhor inchado, que miseravelmente reza, em uma paródia perfeita. Eu achei uma paródia perfeita para você e sabe o que eu disse para ela? Eu disse “meu bem, eu vou pôr a boca em você”.

E puxou o gatilho com um ruído estridente saindo pela boca da arma. O regente caiu sobre a cama, com a cabeça pendendo de lado, absolutamente morto.

– Harmony? Ficou louca!? Era para ser em silêncio, agora vão nos matar!

– Não, querido – ela sussurrou calmamente –, só o regente vai morrer, o resto de nós, o povo, podemos viver agora!

– Harmony…

Ouvimos investidas sobre a porta de carvalho e, na terceira tentativa, a guarda pessoal do ditador adentrou no aposento. Harmony havia puxado a bandeira lambuzada que trazia em sua bolsa e, com os olhos mareados de lágrimas, mas a boca erguida em um sorriso gentil, ela disse:

“Agora sim, meu amor, a guerra acabou” e correu para a janela central.

Diante de toda a população, a absurda jovem então incendiou a bandeira banhada de óleo de baleia e gritou a plenos pulmões “A RESISTÊNCIA VENCEU” e então a jogou sobre um complexo de madeira, que imediatamente começou a queimar.

– HARMONY, NÃO!

Mas, tarde demais. Um tiro, bem no centro das costas, empurrou o corpo da moça para lá da murada e minha corajosa Harmony caiu no céu.

Sem perder tempo, puxei a pistola que ela deixara sobre a cama e apaguei os três guardas que haviam entrado no aposento. No que matou Harmony, atirei ainda três vezes mais, com a lágrima salgada ardendo nos olhos, o coração dilacerado e a camisa cada vez mais manchada de sangue.

O fogo impiedoso se alastrava por todo o aposento e soube que precisava correr. Vindos de fora, já podia ouvir um movimento de guerra que eu conhecia bem desde a infância. Os rebeldes já percebiam o que acontecera e se mobilizavam contra os soldados. E eu, sozinho naquele imenso palácio, guardava o choro para quando parasse de correr, das chamas e da guarda.

Perdido, apenas seguindo as escadas, dobrei em um corredor e fui finalmente capaz de enxergar a luz, e com ela o som de gritos e armas de fogo.

Foi quando se fez ouvir um chiado e, na sequência, a voz do professor em todos os alto falantes do palácio e da cidade.

“Arthur Langue e Harmony Brum, nós, a resistência, salvamos este povo. A guerra finalmente acabou”. Houve um som de tiro e um novo chiado, então nada mais se ouviu.

Quando alcancei a praça, ninguém sabia por que lutavam ou por quem. Ao me verem ali, exposto, alguém gritou “Lá está, é o Langue” e em um momento dezenas de armas de soldados estavam apontadas para mim. Outras dezenas imediatamente apontaram para tais soldados e meus homens, no fim, estavam armados, prontos para o combate.

Houve um silêncio mortal e todos me olhavam aflitos, esperando que eu fizesse algo. Que eu simbolizasse algo. Oficializasse algo.

Mas tudo em que eu conseguia pensar era naquele corpo inerte, que jazia sobre o chão. O mundo dos vivos esperou muitos anos para ver tamanha bravura em alguém e o mundo dos mortos seria agora contemplado pelo mais belo cadáver já existente.

Harmony era o centro, a divisa entre o bem e o mal naquele momento, entre a dúvida e a verdade. Ninguém sabia a quem reverenciar e ela não teria se assustado com isso, pois sua fé não era nas pessoas.

E quando eu me ajoelhei ao lado dela e toquei seus cabelos tingidos, senti vontade de beijá-la, porque era esse o sinal. Quando nossas bocas se encontraram a história viva e passada estava feita.

As armas, uma a uma, se abaixaram e, em um momento praticamente sem som, já sabiam a quem o Estado estava entregue.

E, olhando para ela fixamente, torcendo para que a qualquer momento ela abrisse aqueles olhos cinzas, eu confessei-lhe que ela me era o sinal mais lindo de todos.

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