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Thiago Medeiros e suas formas de ser possível

“Acho que poesia é um sal que não deixa a gente apodrecer”

Por Tiago Silva

Thiago na construção do espetáculo João ou eu só queria ver os pássaros. Foto: Carlos Roger Tavares

Thiago chega com sorriso reluzente e camiseta do Chico Buarque, com tropicais folhas de palmeiras. Elas destacam o intenso verde de seus olhos, que flutuam em matizes de azul, a depender da luz. Gotículas de chuva estão esféricas em seus fios dourados, como orvalho da manhã sobre o trigo. Está abafado e chuvisca lá fora. Seu abraço de alfazema é lilás e morno. Carrega seu cheiro em velho frasco de plástico de lavanda, para perfumar as mãos durante o dia. 

Garoto tímido, cresceu no bairro do Alecrim, na Zona Leste de Natal, próximo ao cemitério deste bairro. Desse lugar de atmosfera melancólica e de sepultamentos, Thiago desenterra memórias. Viu caveiras, brincou, correu de abelhas e de estátuas. O homem sentado com asinhas no calcanhar corria atrás dele e de seus amigos. “Se você parar, Thiago, ele vai te pegar!”, diziam. A brincadeira era coletiva. Se a estátua fosse pegar só Thiago, ele parava e deitava. Então ele corria para um lado: “Não, Thiago, ele tá vindo daí!” E corria para o outro: “Não! Ele tá vindo daí!” “Ele não tá vindo nãaaao!”, gritava.
Quem nasce numa periferia e luta por uma sobrevivência não vem jogando flores, falando do passarinho, da gaiola azul; acho que vem mesmo com a peixeira na mão pra resolver a parada
Seu primeiro emprego foi lavando túmulos. Achava um barato. Imaginava quem poderia estar dentro daquelas sepulturas, gostava de mexer com velas, santos. Perto do tanque de água que as pessoas usavam para lavar os túmulos, havia uma foto de uma mulher, Lindalva, em cores muito fortes, a primeira foto colorida que tinha visto e que ficou xilogravada em sua memória até hoje. Sempre gostou de ficar sozinho no meio do nada. Então aquele ambiente não o assustava. Ficava conversando com os mortos, escrevia cartas para sua avó e deixava em seu túmulo. Sua mãe não queria que assinasse as cartas, pois “não pode levar carta assinada para o cemitério”. Ele desobedecia e entregava a carta a seu destinatário, e ficava tentando criar o rosto de sua avó materna que não conhecera.

Seu sonho era cursar Filosofia. Na época, o ensino superior era algo muito distante, e ser frade franciscano possibilitaria seu curso. “Só em dizer ‘você vai morar em Recife’, gente, vou sim”, brinca. Entre os três votos – pobreza, obediência e castidade –, ele diz que o mais difícil é o último. Acha bonita a maneira como a qual São Francisco se relaciona com as coisas e acha que talvez tivesse sido um bom frade franciscano.

Sabia que não tinha pré-disposição para brincadeiras de correr. Jogar bola, queimada, bandeirinha – detestava. Ficava sentado na calçada, de perna cruzada, lendo gibi, escrevendo no chão, enquanto seus primos brincavam. “Ninguém queria conversar comigo. Um chato, né? Ou tava chorando ou tava calado”. Espinhas e problemas com dente na adolescência deixaram sua autoestima “baleada”, lá embaixo, trancando-o em timidez.

Essa inibição, contudo, ajudou-o a olhar para si com mais nitidez, e navegar com mais fluidez pelos seus caminhos introspectivos, tão necessários aos poetas. A palavra escrita chegou primeiro pelos ouvidos, através dos discos que ouvia e pela TV. As vozes femininas de Roberta Miranda, Maria Betânia e Alcione, por exemplo, ecoavam em sua casa. Adorava mexer nos discos, nos encartes, ler as letras das músicas, ficava viajando nesse mundo artístico com sua irmã. “Parecia que eu podia ser aquela voz que estava cantando”, lembra. Thiago escrevia diários e escondia seus registros para ninguém ver. “O que eu escrevia ali era muito real, era muito verdade; era como eu me comunicava melhor com o mundo”. Só depois de adulto entendeu que o que escrevia ali era poesia, independente de regra ou forma.

Thiago e Marina Rabelo durante o sarau Insurgências Poéticas, edição erótica. Foto: Franklin Levy

Thiago escreve todos os dias. A agonia toma conta de si se não o faz. Às vezes, é só exorcismo, transformar o sentimento de então em palavras escritas. Geralmente, eles passam primeiro através da caneta para algum de seus vários caderninhos. Suas matérias primas são suas histórias, vivências, o amor. Escreve fora de regras. Às vezes está numa rede social ou na rua, chega uma frase e depois completa. 

Ele gosta de deixar transparecer em sua obra seu lugar de margem, de beira, por ser uma pessoa que nasceu na periferia. “Marginalizado, porém, na beira, que eu acho mais poético. A beira do rio, a beira do mar...” Também o lugar da homoafetividade, às vezes com um sujeito poético feminino. Cresceu numa família matriarcal, rodeado por vozes femininas, e elas ressoam sempre em seu trabalho. As palavras em movimento do teatro também chacoalham sua escrita. Vê as coisas com muita imagem. Cria imagens, cenários com os textos do dia a dia, vê as coisas acontecendo em sua mente criativa. 

É com a arte que Thiago se torna uma pessoa possível. Possível para o amor, para a amizade, para a sociabilidade. Não se vê fazendo outra coisa na vida. Pois tem coisas que só em cena ou escrevendo que tomam forma. No córrego de palavras, Thiago navega pela poesia. Ela é, para ele, amizade. É a possibilidade de fazer amizade com as coisas, com a cidade, com as pessoas. É a amorosidade que precisamos para olhar as coisas do mundo. “É um sal que não deixa a gente apodrecer”, reflete.

Thiago e Michelle no lançamento de Para eu parar de me doer. Foto: Maiakovski Pinheiro

A vida às vezes nos proporciona belos encontros com pessoas cuja beleza das almas reconhecemos de imediato. Thiago e Michelle Ferret se conheceram numa entrevista, quando ela trabalhava na Tribuna do Norte e ele participava de um grupo de teatro da Casa da Ribeira. “Há 800 milhões de anos atrás”, tempo do coração. “Aí pronto. Tem 10 anos isso já. Eu era uma criança, né, chato pra caralho”. 

Desde então, compartilham vida e poesia. Um vai para a casa do outro cantar, tocar violão. Escrevem juntos para o teatro. Já escreveram, junto com Marina Rabelo, quatro peças. “Michelle é, ave maria, acho que é o ser humano mais imantado de poesia. Eu nunca conheci outra pessoa igual a ela”. Michelle é daquelas que liga para conversar, falar da novela. Devido ao trabalho dos dois, se veem pouco agora. 

No carnaval de 2011, foram para Olinda. Um rapaz queria assaltá-los. Michelle disse que só tinha um batom e mostrou a beleza da Lua. “Eu: ai cala a bocaaaa”, lembra Thiago. O homem deu um tiro para cima e de repente caíram na real. Levou tudo que não tinham. Michelle só tinha um batom e depois foi ver que tinha dinheiro dentro do bolso. “Meu Deus! A gente podia ter morridooo”. 

Michelle é uma referência amorosa para Thiago. Ela o torna possível. “Se escrevo para o teatro, poesia e tenho essa coragem de me expor na escrita, eu devo isso a ela; Michelle me inspira bastante”.

Thiago cresceu lendo mulheres. Acha que os homens têm uma maneira muito chata e pouco interessante de ver o mundo. Não sabem falar das coisas. “Porra, ainda bem que sou viado!”, exclama. Clarice Lispector, por exemplo, é uma referência forte. Leu primeiro A paixão segundo G.H., “lembro muito forte dos desenhos do parto que ela vai narrando e da barata que a mulher come”. Descobriu um mundo em Clarice.


quem me vê assim erguida e sóbria
no alto dos meus saltos
não sabe dos abismos
entre meu corpo e o ar

quem me vê sempre sorrindo e cantando
não mensura os encargos que minha voz
calada tem que pagar
ao longo destes anos carregando tua vida
na garganta

quem me vê desfilando estamparias
não sabe da simplicidade que jorra todos os
meses dentro de mim

quem me vê cortando o acaso com espadas
de fino corte
não sabe da espera delicada de minhas mãos
em busca de um lugar para esquecê-las

quem me vê perfumada, erguida e estampada
não sabe da metade um terço
das preces que faço vendo a vida do alto dos
meus saltos


Esse é seu poema favorito do primogênito Para eu parar de me doer. A vida não é sempre bela e perolada. Até mesmo nas alegrias temos pitadas de tristeza. A dor existe. E os abismos, os encargos, a aspereza, a simplicidade. “A acho que as pessoas não se interessam por essa pessoa, elas se interessam por aquela ali que tá lendo os poemas no palco”. Não se interessam pela pessoa com a xícara de café na mão, que tenta parar de fumar. Nem pela que arruma a casa, passeia com a cachorra, compra pão, anda no cemitério, encontra os amigos. “É triste entender que as pessoas não se interessam pela humanidade das pessoas. Elas se interessam pelo business”. 

Uma das coisas mais terríveis da vida para Thiago é você ir sozinho e sair sozinho de um hospital. Ele conta que, ao mesmo tempo que nos aproximamos da liberdade, ficamos menos humanos. “Que liberdade é essa que deixa a gente sozinha?” Thiago quer liberdade compartilhada. Quer dividir o pastel, o café, o confeito.

Thiago completou há pouco mais uma estação, passando por entre pétalas sedosas e espinhos pungentes, dores e delícias. Sente-se bem como nunca esteve. Ampliou a vida.

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